Poderíamos até simplificar a leitura e dizer que Iris Dupin (Emmanuelle Béart) possuía um transtorno de personalidade que poderia ser medido e explicado pelo fato de mentir compulsivamente. Encontrar uma inscrição de patologia para as ações humanas tem sido, ao revés, uma das saídas mais inumanas que vimos frequentemente assolar as relações interpessoais.
Na película “Os olhos amarelos dos crocodilos” de Cécile Telerman, uma irmã (Iris Dupin) é mostrada com todos os estereótipos da pessoa bem sucedida nos dias contemporâneos: bela, com um casamento também esteticamente bem resolvido, um filho bonito e uma casa invejável. O marido talvez seja o elo com a realidade. De outro lado, sua irmã, Joséphine Cortes (Julie Depardieu), aparece como o avesso disso tudo: possui um casamento que acaba por ruir dentro do filme e ao mesmo tempo, mora no subúrbio de Paris, ostentando alguns títulos acadêmicos sustentados por uma tese que trata da Idade Média. Aqui uma pista interessante sobre o que importa-nos no filme. Ora, é sabido que a Idade Média é adjetivada por alguns pensadores como a idade das trevas, da obscuridade no pensamento dada sua relação com o um fundo cristão de pensamento. O fim do medievo é chamado de modernidade, ou seja, a época das luzes racionais vem deixar para trás um tempo em que os dogmas e os argumentos de autoridade povoavam o imaginário dos pensadores. Aqui jaz uma questão: a crença em uma razão que conhece sem se misturar com o objeto, a ideia de uma imparcialidade da ciência e do cientista, essa crença, em que se difere da crença anterior? Seria menos crença? Uma crença racional e demonstrável? A razão, portanto, não encontra limites? Mas e a poesia? E a física quântica?
Adiante nas reflexões, quando Iris inventa que é escritora, socorre-se da irmã que é uma estudiosa para cumprir sua fala enganosa. O resultado fora maravilhoso. Mas, como nos ensina Saramago, “somos todos escritores, mas alguns não escrevem”. E na mesma toada, Mia Couto quando interrogado quando e como escrevia, ele apenas diz: “escrevemos a todo o momento”. Isso, portanto, é um dos fios de nossa reflexão, ora, um escritor não é apenas o que “vomita” na tela as letras. Esse ato é meramente formal. A escrita se dá na dimensão da vida e não na dimensão do PC. Isso nos ensina o poetinha: “pois a mulher tem que ter qualquer coisa que chora, qualquer cosia que sente saudade” (Vinícius de Moraes). O escritor também. Assim, a farsa sucumbe exatamente quando Iris precisa ser escritora, pois quem escreve sabe: as letras são os rabiscos que mantêm o sangue bombeando. Ela não possuía sangue, tampouco, teria como bombear.
Mas há leituras interessantes nessa questão, pois o conflito ali está também em ver que para que exista o holofote, necessariamente a sombra tem que estar lá. De novo e mais uma vez pensamos em Platão e seu “Mito da Caverna”, que não é apenas um texto de filosofia do conhecimento, pois, Platão politicamente determinou ali que na luz está a verdade. A sombra restou à margem. Sem sombra é luz demais. Morremos. Assim, Jo – e é importante perceber que ela é chamada no diminutivo, seu nome é Joséphine – seria a sombra necessária para a realização da luz que é Iris, mesmo que essa luz seja uma crença a mais. Iris é Antígona e Jo, Ismênia. Quando iremos contar a história de Ismênia? As margens sempre foram vistas assim. Dai que sombras, margens, sejam palavras que não interessam ao showbiz. Não é em vão que a doença da mentira compulsiva é chamada: mitomania – e não é corriqueiro hoje dizer que quem disse algo espetacular “mitou”? Mas não queríamos tratar de Iris como uma doente. Ela o é. Mas a doença de Iris mostra outra doença que não é diagnosticada nos livros de filosofia comuns: temos a patologia que envolve uma decisão sobre o que é ciência e o que não é. O que é bom e o que é mau. Onde está a verdade e quem diz o que ela é. Assim, Iris precisava ser bem sucedida dentro de si, pois externamente já aparentava. Aí a patologia da sociedade do espetáculo. Ela não cessa nunca. É atemporal. O humano não – é finito. Nesse sentido, o vazio de Iris fora preenchido com mentira. Sua irmã, o avesso dela, quis manter-se na coxia. No entanto, platonicamente a filha de Jo dá a cada um o que é seu e revela de quem era o livro escrito. Iris não contava com o fato de que por detrás da retina dos crocodilos há uma camada que se assemelha a um espelho, isso torna sua visão mais apurada à noite e faz com que quando é sobre ele projetada a luz, produza uma cor amarelada. O sucesso do livro refletiu a cor bege de sua irmã, que sem a necessidade das luzes artificiais, fez surgir das profundezas da idade média, da escuridão, a luz própria que irradiam dos olhos amarelos dos crocodilos.
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