Poesia e política no longa “Neruda Fugitivo”, de Manuel Basoalto

Os poemas nascem sob as circunstâncias as mais diversas. Muitas vezes os poemas nascem sem sequer haver um motivo a priori. Há poemas que se mostram em jeito de escritura. Outros poemas veem em jeito de canção. Poemas há em maneiras as mais diversas. Concretos e não. Metafísico, escritos, cantados, sussurrados. Ah, os poemas sussurrados são um jeito interessante de dizer o que seria um poema. A lua é um poema. A ausência da luz também. Enquanto a geleira escorre na cordilheira, os olhos do poeta enxergam o choro de um povo. A cordilheira quando recebe o poeta, abraça, acolhe, inspira e ao mesmo tempo amedronta. A cordilheira que levou Neruda para fora de um Chile golpista. Ao mesmo tempo em que levava o poeta para dentro de si e para o interior de uma cultura riquíssima que habita os Andes.

Na película “Neruda Fugitivo” de Manuel Basoalto há uma tentativa de mostrar a perseguição sofrida por Neruda. Perseguição que também sofreram os poetas na polis ideal de Platão. Esse filósofo quando fundava sua cidade ideal pensou que os poetas não seriam interessantes, sobretudo na pedagogia do povo. Essa situação também se caracterizou quando Neruda fora caçado por um presidente que sequer aceitava uma possível contestação do seu pensamento. Este é o cenário no qual escorre o momento de um Chile contrário à liberdade de pensamento e liberdade política.

Esses eventos são importantes por vários motivos para a história do pensamento político e filosófico ocidental. Podemos perceber junto de Nietzsche que quando Sócrates constrói o pensamento filosófico fundado no logos, ele retira uma espécie de inspiração mitológica para narrar e pensar a existência, conferindo uma castração dentro da construção do imaginário ocidental. Dentro dessa perspectiva poderíamos perguntar o que é a poesia? A questão pode ser respondida com a própria assinatura da vida de Neruda. Quando ele atravessa os Andes, para dentro da floresta, para fora da polis opressora. Ao mesmo tempo em que subverte o regime totalitário que nascia no Chile, Neruda desconstrói mais um ensinamento grego, agora de Aristóteles, que nos ensina que fora da polis não existem homens, mas tão somente bestas ou deuses. Ora, parece-nos que o que é da poesia diz-nos essa fala: são homens sendo deuses, homens sendo bestas. Neruda foi deus e besta. Cantou em versos o povo do interior do Chile. Cantou em poesia a liberdade. Subverteu a ordem que se queria impor. Carregou feito uma besta o peso da opressão. Manchou com sangue e suor os papéis nos quais sua poesia derramava. A poesia não é apenas o ato, mas antes e sempre, a potência que incide sobre a existência, que a transforma, inventa, rabisca, esquece e faz história.

A poesia de Neruda serviu ao seu povo. Neruda nos ensinou mais que Platão. Mostrou que não há hierarquia e ordem de preferência na construção da narrativa, que quando realizada a partir o fazer poético, se mostra plural por essência de seu próprio existir. A poesia que se encerra no papel tem nele apenas um momento de transferência, ora, poesia é o pé no chão que carrega o cheiro da estrada. Essa a sina de Neruda. Carregar em seus versos tanto a história de um Chile andino, assim como, a necessidade de mostrar que entre política e poesia há apenas uma diferença conceitual, mas que enquanto o poeta deita no papel suas palavras, está ali a derramar um caldo social que por vezes denota o sentimento e as intenções de todo um povo. A poesia encerra o sentimento do mundo. Neruda, enquanto político, deu voz ao povo de seu país. Porém, enquanto poeta, e esta distinção é meramente pedagógica, deu voz a todos os humanos, ora, a poesia não é ciência que carece de conceitos e critérios para alcançar o outro, isso, pois a poesia é a própria alteridade em manifestação pura. O poeta não leva nada da poesia além de seus pedaços que caem a cada verso, além de seus pedaços que renascem a cada estrofe construída.

Neruda foi poeta e o poeta é um político. Aliás, Lacan já nos ensinaria que nenhum ato humano é desnutrido de politicidade. Enquanto desvendava os segredos da cordilheira, Neruda percorria com seus versos o próprio povo chileno. Em cada poetização daquela natureza errante e esplêndida, Neruda trazia ao humano esperança. E qual seria a marca maior de um político do que aquele que promove uma resubjetivação de um povo, do que aquele que traz esperança e imaginação.

A principal lei instituída por Neruda fora exatamente aquilo que de alguma forma o logos grego antigo um dia deixou de tocar. A lei da imaginação. Aquela que imagina um país livre, uma selva amante, uma neve caliente, um direito justo, uma paz dentro da guerra, uma pureza no amor, e ao fim de tudo, poesia onde mora a política. Quando os poetas forem políticos a ideia de Platão enfim se realizará.

 

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