Livros que circulam

Há livros que circulam, que voam, que passam de mão em mão, que não se sentem bem parados sempre na mesma estante enquanto disponíveis apenas para um único amo. Há livros que precisam sair, ver a luz do dia, conhecer novos lares, novas bibliotecas, sentir olhares outros, toques diversos. Na realidade, todo livro anseia por isso, ser e estar livre, circular, rodar, ser absorvido pela maior quantidade de olhos possíveis. Entretanto, por mais que todo e qualquer livro sempre quer ser lido, não são todos que passam de mão em mão naquele ritmo intentado.

Os livros são para que sejam lidos. A essência de uma obra literária precede a sua existência. Com algumas raras exceções, como aqueles escritos que são redigidos apenas para libertarem a mente do seu autor, que restarão guardados, escondidos, protegidos de qualquer olhar humano outro que não o de seu próprio criador, daquele tipo que pode se chamar de “literatura de gaveta”, pois o autor escreve para si próprio não objetivando alcançar a atenção de outros que não a sua própria – muitas vezes limitada ao ato da escrita -, o fato é que aquilo que se escreve é assim feito para que seja lido. Mesmo nas exceções, o texto pode discordar do autor, encontrando algum jeito de mostrar a sua face ao mundo: um bom exemplo disso talvez seja a discordância de alguns dos escritos de Kafka para com o próprio autor – a maioria não conseguiu se salvar, como é sabido, mas graças ao fato de Max Brod ter ignorado o pedido de Kafka, em seu testamento, para que seus diários, manuscritos, esboços e cartas fossem queimados sem serem lidos, é que parte da escrita kafkiana pode ser conhecida pelo mundo. Teriam os próprios textos influenciado de alguma maneira a decisão de Max Brod?

Talvez dependa da força de vontade dos próprios escritos para que aquilo que intencionam, serem lidos, repercuta no mundo que os circunda. Essa força viria do universo literário no qual se situam num de seus planos de existência, gerando efeitos concretos no mundo em que os leitores estão e existem, buscando sempre novos livros a serem lidos. É como se o livro, mas não qualquer livro, possuísse uma força de atração que fizesse com que ele circule livremente, de mão em mão, tendo assim a oportunidade e o prazer de ser deleitado com vários olhos passando pelas linhas que compõem as suas tantas páginas.

Algumas obras são privilegiadas com esse poder que lhes é inerente. É como se alguns exemplares possuíssem o dom de se fazer circular – isso ou seria mero privilégio de cair nas mãos certas que façam com que a coisa seja assim. Aqui é necessário, portanto, estabelecer algumas distinções: quando se fala, no presente texto, em obra ou livro que possui essa espécie de poder, diz-se de um exemplar em específico, não da obra “abstrata” que está presente em várias cópias de si mesma; o dom do qual aqui se diz surge, espontaneamente ou não, em obras particulares e específicas de acordo com a distinção anteriormente feita, ou seja, não se diz do poder que um livro “abstrato” gera quando se transforma em uma obra aclamada, mas sim de uma energia que está presente num determinado exemplar, de modo que esse poder acaba aparecendo tanto em obras notórias como em obras menos conhecidas, pois o poder está no objeto e não naquilo que uma cópia representa como parte do “todo” da obra.

Se assim for, alguns exemplares de determinadas obras exerceriam a atração do seu poder em todo aquele que as tocasse, sendo impossível que esse livro em questão fique parado. Assim que chega nas mãos de alguém, esse alguém lê a obra e surge aí uma vontade irresistível de passar o livro para frente. Pode ser através de uma doação, de empréstimos ou ainda do estabelecimento de uma corrente do tipo “eu te dou esse livro se prometer que após a leitura vai passá-lo para frente” – quem recebe, passa e cobra a mesma promessa da pessoa para quem a obra é repassada, e assim a coisa vai indo. Esse efeito, essa necessidade, teria como mola propulsora a mágica que resplandece do próprio livro. Os livros circulariam por conta de uma forma de fenômeno místico causal.

Se assim não for, o que seria decepcionante, pois a magia não estaria nos livros em si mesmos, o fator sorte, dito aqui como acaso acontecendo, é que seria o responsável pela circulação dos livros: somente quando uma determinada obra caísse nas mãos de alguém que possui esse afã, essa vontade ou esse costume de fazer com que livros circulem, é que o fenômeno de um livro passando de mão em mão apareceria – cessando no momento em que alguém optasse por se apropriar da obra por qualquer motivo, válido ou não.

Seja como for, estando ou não a magia presente no fenômeno dos livros que circulam, o fato é que esses anseiam para que sejam lidos. Quanto mais, melhor – mesmo que por um único leitor que costuma eventualmente consultar ou reler aquela obra.

Os livros querem ser lidos, com alguns indo além ao encontrar um jeito de circular por aí. Não é necessário que todos sejam assim, mas é essencial que aqueles poucos que constituem e representam esse fenômeno continuem viajando de mão em mão.

Aos livros que circulam: que assim continue acontecendo!


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