O mito das três mulheres e dos três lobos é um conto popular e contém a marca dos primórdios da data do Halloween. A história Acallam na Sénorach é o texto mais importante do Ciclo Finn ou Ciclo feniano, que foi o texto em prosa e verso sobre as histórias do herói Fionn Mac Cumhaill e seus guerreiros. A obra data do século XII, contém por volta de 8.000 linhas e é a mais longa obra sobrevivente da literatura irlandesa medieval.

Do Irlandês médio, o título em inglês virou The Dialogue of the Ancients of Ireland, O diálogo dos antigos da Irlanda. E a história das mulheres-lobos é contada em uma breve parte. Para ilustrar a história, a pintura de Eugène Grasset, feita em 1900, apresenta três lobos escondidos entre os troncos das árvores e três espíritos femininos assustados, a principal com a mão no peito, a pele toda azulada. Logo abaixo delas, uma trompa abandonada. A pintura é exatamente a representação dessa história irlandesa.
O conto das Três Mulheres e Três Lobos
No enredo, Caílte será aquele que informa sobre a história dos lugares que ele e seus guerreiros veem no caminho. Três lobas saem todos os anos da Caverna de Cruachan e destroem carneiros e ovelhas, e os moradores devem esperar que elas se retirem novamente para a Caverna para, assim, estarem a salvo. Porém, as lobas têm uma fraqueza: se sentem atraídos a parar e ouvir músicos de harpas, alaúdes, qualquer música pelo mundo. Então, numa conversa com Caílte, Cass Corach decide seguir sua ideia de atraí-las para o alto das pedras com seu instrumento musical. À noite, as lobas pararam para ouvi-lo. No dia seguinte, Caílte sugere criar uma emboscada:
“Vá lá novamente amanhã’, diz Caílte, “e diga a eles que, para ouvir música e menestréis, seria melhor ouvi-la na forma humana do que na forma de lobas.”
Assim, no amanhecer, Cass Corach viajou para a mesma pilha de pedras e dispôs seu povo ao redor dela, e as lobas se direcionaram ao mesmo lugar e deitaram nas patas dianteiras, ouvindo a música.
Então Cass Corach continuou a dizer a eles: “Se vocês fossem humanos”, segundo ele, “por origem, ouvir a música como humanos seria melhor para vocês do que ouvi-la como lobas.”
E elas ouviram isso, jogaram fora as longas coberturas escuras que estavam ao redor deles, pois amada para elas era a música arrebatadora dos elfos. E como eles estavam lado a lado e cotovelo a cotovelo, Caílte os olhou e colocou seu dedo indicador na tira da lança, de modo que a lança em seu movimento virulento passou pelas três mulheres, e pousou no topo do seio daquela que estava mais distante dele. E assim elas estavam na lança, como uma meada bem unida.
Caílte disse:
Caílte com seu veneno matou o estranho, desconhecido trio.
Elas caíram, uma grande pena, todas de uma vez só.
Então Cass Corach foi até elas e decepou suas três cabeças. Desde então, o Vale das Formas do Lobo é o nome do vale no lado norte de Cairn de Bricriu (HARMON, 2009, p.178, tradução nossa).
A relação com Samhain e bruxaria
Essa história tem uma grande conexão com a origem do Halloween, pois é do mesmo período em que ocorria o Samhain, festa gaélica de colheita que dá início ao inverno, amplamente importante também no território da Irlanda, marca esse início da data festiva que hoje chamamos Halloween.
Abater esses espíritos é uma metáfora para o esforço de sobrevivência no inverno, quando se abate o gado para que sirva de alimento na época mais fria do ano. A feitiçaria surge culturalmente para que grupos lidem com os obstáculos naturais, como praga, inverno, perda de alimento. O que ocorre, porém, é que ao se transmitir as histórias em torno dessas cerimônias, as marcas da construção em torno do gênero feminino e masculino se fazem presentes em um discurso de dominação.
Topography of Ireland
O selvagem e aquilo que foge ao controle do poder dominante se encerram, culturalmente, na figura do feminino ou do outro estrangeiro. No século XV, era comum a crença de que a mudança de forma, a licantropia, declarava uma associação à bruxaria e, portanto, ao Diabo. As punições às bruxas foram, sobretudo, punição ao gênero.
Na obra do século XII, Topography of Irland (Topographia Hibernica), escrita por Gerald de Wales (Giraldus Cambrensis) em 1188, há uma história de um lobo que conversa com um padre. Ela se situa na Irlanda de 1182.
De forma resumida a partir da tradução de Thomas Forester, um padre viaja de Ulster para Meath, e sendo obrigado a passar a noite em uma floresta, senta-se diante da fogueira que ele havia feito, quando um lobo o aborda em uma voz humana. Após o susto e responder com dogmas católicos todas as questões do padre, ele pôde contar o que queria.
Tratava-se de um homem de Ossory e ele era o resultado de uma antiga maldição em St.Natalis: a cada sete anos um homem e uma mulher eram exilados, não apenas de Ossory mas de sua forma humana, sendo transformados em lobos. Se tivessem sorte, após sete anos eles eram substituídos e retornavam à forma humana.
O que aquele homem em forma de lobo queria é que o padre fizesse a extrema unção de sua parceira doente. O padre deu início e a loba implorou que ele continuasse, mas o padre disse que não estava com o viático. Neste ponto, o lobo reapareceu carregando uma pequena bolsa que continha as hóstias consagradas do sacerdote. Quando o padre se dirigiu para a loba gritando em dor, hesitou em ajudar. O lobo, então, ergueu a pele dela, revelando uma mulher idosa por debaixo. Aterrorizado, o padre continuou com seus rituais até o fim.
Grato, o lobo por fim compartilhou a fogueira com o padre e indicou a ele o melhor caminho na floresta (WALES, 2000, pp.44-45, tradução nossa).

Todo o texto de Gerald de Wales contém um moralismo reformador. A figura do padre vem para resgatar esses dois seres condenados ao pecado e à forma selvagem. O lobo, ao fim, promete gratidão e seguir a palavra de Deus, assim como afirma que será invencível aquele que seguir Deus, e não sucumbir aos atos ilícitos e depravados (id., ib., p.45)
Diferente da figura feminina, nessa história o lobo é um homem honrado que ajuda o padre, encontra uma salvação enquanto a parceira morre. De forma sutil, vemos mais uma marca das diferentes visões sobre gênero, pois revelando o corpo feminino puro por debaixo da sua forma animal, o padre foi convencido a continuar, salvando esse corpo do pecado.
A obra de Gerald de Wales foi criticada a partir do século XVII por autores irlandeses por se tratar da visão inglesa sobre o povo. O aspecto fantástico de suas histórias era também um recorte para um estereótipo de que irlandeses eram selvagens e violentos, precisando de uma reforma cristã, recorte esse usado com muita frequência para delimitar outras culturas além da hegemônica. Mas, no decorrer dos séculos, estudiosos buscaram entender o papel valioso desse autor, principalmente porque ele não inventou o conteúdo que escreveu, eram relatos descobertos a partir de suas viagens e foi inovador como registro etnográfico do século XII.
O resgate dessas histórias é uma forma de promover uma retomada da vasta cultura em torno do Halloween. Pois o contexto em que essa data começa a se formar é cheia de superstições curiosas, visões culturais que falam sobre um povo. Se hoje criamos imagens em torno da licantropia, da mulher como o selvagem do lobo ou a figura assustadora do lobisomem, suas origens são históricas e preciosas de se preservar e retomar.
Referências bibliográficas
COLLINS, David. Werewolves in the woods – a 12th century account of strange happenings on the borders of Meath. Holinshed revisited
Marginal Drawings Of The Talking Wolf, In Gerald of Wales’s ‘History And Topography Of Ireland’ – British Library
HARMON, Maurice. The Dialogue of the Ancients of Ireland: a new translation of Acallam na Senórach. Traduzido, introdução e notas por Maurice Harmon. Prefácio de Sean Ó Coileáin. Irlanda: Carysfort Press, 2009.
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WALES, Gerald Of. Topography of Irland. British Library Ms. Royal MS 13 B VIII f.18.
CAMBRENSIS, Giraldus. The Topography of Ireland. Traduzido por Thomas Forester. Revisado e editado com notas adicionais por Thomas Wright. In parentheses Publications. Medieval Latin Series. Cambrigde, Ontario, 2000.
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