Relações sobre loucura e crime e as sementes da antropologia criminal no século XIX

Em meados do século XIX, Bénedict Morel, um psiquiatra francês, sugeriu que algumas pessoas poderiam ter algumas falhas biológicas em relação ao ser humano considerado normal. De acordo com a “teoria da degenerescência”, essas falhas seriam visíveis em estigmas físicos e influenciariam no caráter, no comportamento e na saúde das pessoas e poderiam até mesmo ser transmitidas hereditariamente. A loucura, que até então era vista como um desvio da razão, a partir desta teoria, passou a ser compreendida com uma forma de degeneração, uma questão biológica. Porém, a ideia de degeneração não envolvia apenas a loucura, mas um conjunto de condutas não aceitas socialmente, como o alcoolismo e a prostituição.

Ao atribuir uma origem em comum à loucura e ao crime, esta ideia acabou lançando as sementes da antropologia criminal, uma espécie de ciência que buscou compreender comportamentos criminosos a partir de noções científicas e biológicas.

Esta patologização do crime se tornou ainda mais popular a partir da teoria do criminoso nato, do psiquiatra italiano Cesare Lombroso, que sugeria que a predisposição a cometer crimes era biológica e poderia ser transmitida geneticamente e também ser identificada a partir de certas características físicas.

Mas, o surgimento de uma nova ciência nem sempre é aceito por todos e seu processo de legitimação, muitas vezes, envolve disputas e negociações entre vários setores. Um caso que pode ilustrar esta questão é o julgamento do crime cometido pelo jovem médico Manuel Morillo, em Madri, na Espanha, numa noite de 1883.

O caso foi analisado e narrado pelo historiador espanhol Ricardo Campos-Marín no livro El Caso Morillo: Crimen, Locura y Subjetividad em la Espana de la Restauración e, neste texto, trarei um breve esboço de algumas das ideias do livro.

Naquela noite, Morillo foi preso após atacar José Fernandez e Carolina Lanzaco, pais de sua namorada Amparo Fernandez. Durante o ataque, Carolina foi morta com um tiro a queima-roupa e José saiu ferido. A motivação do ataque teria sido o fato de José ter proibido o namoro entre Morillo e Amparo, por várias razões, sendo uma delas o comportamento agressivo do rapaz.

No dia seguinte, o crime estampou a capa dos principais jornais da cidade, tornando-se um grande evento midiático. A imprensa espanhola, explorou o acontecimento incessantemente desde o crime até o julgamento. Muitos jornais buscaram chocar seus leitores apresentando o caso como uma tremenda contradição: Como um crime tão chocante poderia ter sido cometido por um jovem de boa aparência e com uma profissão de prestígio na sociedade? Na imprensa, Morillo foi retratado como um homem extremamente violento cujo comportamento se aproximava muito mais do selvagem do que do humano.

O caso passou a chamar ainda mais atenção quando, alguns dias após a prisão, o acusado começou a apresentar um comportamento estranho e a dizer umas coisas que não faziam muito sentido. Isso fez com que muitos considerassem a hipótese de que o acusado fosse louco. De acordo com o código penal espanhol de 1870, indivíduos reconhecidos como loucos não seriam responsáveis por seus atos e, por esta razão, estariam isentos de cumprir a pena e deveriam ser enviados ao hospício. Por esta razão, toda a argumentação do advogado de defesa foi construída com base na hipótese da loucura de Morillo.

Diante da grande repercussão pública do caso, os psiquiatras adeptos da frenologia (ciência que relacionava aptidões mentais à características físicas) viram a oportunidade de apresentar suas teses frente aos magistrados e a opinião pública e legitimar sua ciência como a única capaz de identificar se um criminoso é louco ou não. Convidados pelos advogados de defesa, os peritos psiquiatras apresentaram árvores genealógicas da família de Morillo e apresentaram casos de doença mental em seus familiares tentando demonstrar, com base em teorias lombrosianas, que Morillo possuía predisposição à loucura desde a infância graças a uma herança patológica.

No entanto, os psiquiatras acabaram enfrentando uma grande resistência dos juristas que rejeitaram suas teorias e as ridicularizaram de todas formas. Para eles, o acusado não era louco e sim uma pessoa má. Ora, a magistratura espanhola daquele período acreditava numa concepção de loucura mais caricata, na qual o louco estaria o tempo todo sob um delírio facilmente perceptível. Em relação a isso, os psiquiatras apresentavam a loucura como algo muito mais complexo que só poderia ser compreendido por meio do olho clínico e treinado dos profissionais treinados para isso.

Em meio a este debate, o julgamento tornou-se palco de um intenso confronto no qual psiquiatras e juristas disputavam a autoridade de definir a identidade de Morillo. É interessante perceber aqui, como diversas esferas se dedicaram a impôr rótulos ao sujeito: Para a imprensa, ele era um selvagem; para os psiquiatras, um louco; para os juristas, um homem mau.

O próprio Morillo também buscou construir uma identidade para si próprio, negando aquelas que lhe eram impostas. O acusado escreveu dois manuscritos sobre suas motivações para o crime. O primeiro deles, foi feito ainda antes do assasinato e o segundo, escrito já na prisão. Em suas próprias palavras, ele se descreveu, não como um selvagem, nem louco e nem mau, mas como uma pessoa boa e justa. Nos escritos, ele afirmou ter recebido uma ordem de Deus para fazer justiça por Amparo punindo seu pai, José Fernandez que, segundo ele, era um pai criminoso e autoritário. O crime cometido, segundo Morillo, foi a realização de uma ordem divina e teve como objetivo fazer valer a justiça dos céus, já que a justiça dos homens era falha. Em um dos trechos do manuscrito, ele afirmou:

É bem possível que eu morra, e se não, também é fácil que, uma vez que os propósitos justos e sagrados que me animam tenham sido cumpridos, eu parei de me relacionar totalmente com este mundo maldito, onde tudo é mentira. (…) Quero que a sociedade elogie a minha memória e diga: Morillo não foi um criminoso; ele foi um indivíduo nobre e honrado que obedeceu a Deus e sacrificou sua vida para ensinar uma lição à estúpida justiça humana, servindo como um instrumento da providência divina para punir a infâmia e crueldade de um pai protegido pelas leis sociais.

De qualquer modo, o julgamento terminou com a condenação do acusado que foi declarado criminoso. Após o julgamento, jornais publicaram duas monografias diferentes narrando todo o caso, intituladas El Crimen de la Calle San Vicente e Processo Morillo. Nas monografias, a história de Morillo foi narrada de forma romantizada, com tom literário e teatral, como uma forma de atrair o público leitor, acostumado a se entreter com peças de teatro.

A monografia Processo Morillo apresenta uma versão mais extensa sobre a participação de um dos psiquiatras no tribunal, se comparada à versão apresentada nas outras fontes analisadas. Em relação a isso, o historiador Ricardo Campos-Marín levanta a hipótese de que o psiquiatra, impedido de  apresentar sua tese integralmente no tribunal, teria facilitado ao jornalista o acesso à sua versão. Ou seja, após ser impedido de legitimar sua ciência nos tribunais, buscou fazê-lo pela opinião pública, por meio da imprensa.

A loucura de Morillo só foi aceita pelos juristas muitos anos depois, após vários exames realizados por vários médicos. Em 1887, o rapaz foi transferido ao hospício, onde morreu, alguns anos depois, em janeiro de 1892.

Se hoje podemos notar um forte diálogo e colaboração entre diferentes esferas como a jurídica ou a psiquiátrica em vários aspectos, o caso aqui apresentado nos mostra que nem sempre foi assim e ilustra muito bem como estas esferas muitas vezes disputam os sentidos e significados de um mesmo objeto. Além disso, perceber o papel e a influência dos jornais durante todo o caso nos ajuda a refletir como, além do campo científico, outros meios, como a própria imprensa, podem influenciar na construção de determinada imagem social acerca do louco e da loucura.

Referências Bibliográficas:

CAMPOS-MARÍN, Ricardo J. El Caso Morillo: Crimen, Locura y subjetividade en la España de la Restauración. Consejo Superior de Investigaciones Científicas. Frênia. Madrid. 2012.

ENGEL, Magali G. Os Delírios da Razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
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FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
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HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
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HUERTAS, Rafael. Historia Cultural de la Psiquiatría: (Re)Pensar la Locura. Madrid: Catarata, 2012.
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PORTER, Roy. Madness: A Brief History. Oxford: Oxford University Press, 2002.
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PORTER, Roy. Uma História social da loucura. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

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