Hans Baldung Grien, As três fases da vida e a morte, óleo sobre painel de madeira, 48,2 x 32,8 cm, 1509-1510. Conservado no Kunsthistoriches Museum, Viena, Áustria.
As pinturas do renascentista do Norte Hans Baldung Grien sempre me chamaram a atenção devido à duas temáticas muito presentes em seu trabalho: a morte e o tempo. E a obra que veremos hoje, As três fases da vida e a morte, trata justamente desses temas.
Nesse quadro, vemos três mulheres de diferentes idades que representam as três fases da vida – a bebê como a infância; a voluptuosa jovem que se olha no espelho figurando a juventude; e uma idosa com a pele enrugada retratando a velhice – e a morte, um cadáver em decomposição bastante parecido com outras representações da personagem em várias obras do artista, por exemplo, A morte e a mulher.
Hans Baldung Grien, A morte e a mulher, óleo sobre painel de madeira, 29,8 x 17,1 cm, 1520-1525. Conservado no Kunstmuseum Basel, Basiléia, Suiça.
O contraste entre a moça e a velha é acentuado pela maneira como as pintou: a primeira em uma pose sedutora, os cabelos longos e loiros caindo em cascata sobre suas costas, a pele clara e firme, ao passo que, a outra tem a pele enrugada e escura – mais próxima da cor da morte do que da carnação das duas vivas que a rodeiam, aludindo, assim, ao seu fim próximo -, os seios caídos, os cabelos curtos e grisalhos, o sorriso com poucos dentes. Já a morte segue a tradição dos transi e das danças macabras do final da Idade Média. Os transis eram esculturas colocadas sobre as tumbas que representavam o morto em decomposição, enquanto que, as danças macabras eram imagens que mostravam cadáveres em estado de putrefação levando personagens das mais diversas classes sociais para os seus túmulos; sendo que ambas as figurações provinham da inquietude quanto à morte influenciada principalmente pela peste, que assolou a Europa no século XIV, e pela Guerra dos Cem Anos.
Transi da tumba do Cardeal Jean de Lagrange, proveniente da Igreja de Saint-Martial, Avignon, século XIV.
Guy Marchant, Dança Macabra, 1485.
A composição e a interação entre as personagens são curiosas. A moça, – vaidosa e absorta ao que passa ao seu redor – como frequentemente é o caso dos jovens -, contempla sua beleza em um espelho, afastando os cabelos do rosto para que ela e, talvez, os espectadores também, possam vê-la melhor. O espelho convexo do período aparece em outras obras do pintor, como em Alegoria da Prudência ou Figura feminina alegórica com espelho, serpente, cervo e corça. Nessa pintura, podemos ver com mais facilidade a imagem de uma caveira esfumaçada que se delineia no fundo escuro. Em vários textos sobre As três fases da vida e a morte, afirma-se que uma caveira também é visível no espelho que a jovem segura, entretanto, é bem mais difícil de perceber seus contornos. O reflexo da morte em seu espelho faria sentido, já que a figura está logo atrás dela, brandindo uma ampulheta, símbolo do tempo que passa, trazendo a morte e o fim da beleza.
Hans Baldung Grien, Alegoria da Prudência ou Figura feminina alegórica com espelho, serpente, cervo e corça, óleo sobre painel de madeira, 86 x 36 cm, 1529. Conservado no Alte Pinakothek, Munique, Alemanha.
Podemos notar, inclusive, que na pintura que estudamos hoje o contorno do espelho e a ampulheta tem a mesma cor, ao menos na versão da pintura que conhecemos hoje, pois os tons às vezes se alteram com o passar do tempo. Se as cores atuais são fiéis àquelas que o artista usou, certamente a escolha de colorir esses dois objetos da mesma maneira não foi acidental.
Hans Baldung Grien, As três fases da vida e a morte, óleo sobre painel de madeira, 48,2 x 32, 8 cm, 1509-1510. Conservado no Kunsthistoriches Museum, Viena, Áustria.
A idosa parece afastar o braço da morte com a mão esquerda e apoiar ou empurrar o espelho em direção à moça com a outra mão. Estaria ela sendo indulgente com a vaidade e a futilidade da juventude, deixando-a aproveitar seu momento de beleza e alegria, pois sabe que ele em breve passará, como o seu próprio já se foi? Ou, ao contrário, estaria o espelho, além de atributo da vaidade, também funcionando como símbolo da contemplação de si mesmo, de seu próprio eu interior? E, a senhora, nesse caso, estaria urgindo à garota para que ela olhe para dentro de si mesma, não somente para sua bela aparência efêmera?
O joelho da jovem levemente inclinado e o torso ligeiramente virado para sua esquerda cria o chamado “contraposto”, resgatado da Antiguidade na Renascença, que confere maior movimento às figuras, e, nesse caso, sedução. O véu que a enlaça e cobre seu sexo é transparente e pouco cobre de seu corpo, aliás, ao contrário, coloca em evidência o que não deve ser visto. Uma das extremidades do tecido é segurada pela morte, como se sua intenção fosse a de puxar suave e lentamente a moça para junto de si. A bebê brinca com a outra extremidade do véu, mostrando que nem as crianças estão livres do mesmo fim e que, cedo ou tarde, sua hora também chegará.
Acredito que a fruta, seguindo as teorias de Joseph Leo Koerner quanto à representações da morte e do pecado original, é uma alusão justamente ao pecado original, pois, a partir do momento em que Adão e Eva – a pose da jovem nua, inclusive, é próxima de várias representações da primeira mulher – comeram o fruto proibido – uma maçã ou outra fruta, dependendo da versão –, eles passaram a estar sujeitos à morte, o que não aconteceria se tivessem respeitado os comandos divinos e permanecido no Paraíso Terrestre.
Hans Baldung Grien, As idades da mulher e a morte, óleo sobre painel de madeira, 151 x 61 cm, 1541-1544. Conservado no Museo del Prado, Madri, Espanha.
Bibliografia/Links:
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Fonte das imagens:
https://www.khm.at/de/object/26657d5ff9/
https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/the-ages-of-woman-and-death/d5ef2c3e-48d1-40a8-8bb7-745314a1197c
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