Crítica social na Arte Clássica: Será possível revisitar o passado?

O último século foi marcado por grandes revoluções no campo das artes. O surgimento das vanguardas artísticas do início do século 20, período denominado Arte Moderna e a sequência a partir dos anos 60, denominada Arte Contemporânea, trouxeram grandes questionamentos e discussões acaloradas a respeito do papel da arte no mundo atual.

O conceito repetido exaustivamente durante o último século é o de “Desconstrução”. Este conceito nasceu da filosofia e serviu como argumento para a maioria dos artistas modernos e contemporâneos. Dito de uma forma mais sutil, o objetivo era romper com a tradição clássica das artes, explorar novas possibilidades, realizar estudos, pesquisas, experimentações. A motivação que levou os artistas modernos a romper com o academicismo é louvável e suas contribuições enriqueceram o campo das artes indiscutivelmente.

Porém, as divergências começam a surgir quando essas rupturas provocadas pelas vanguardas Modernas e Contemporâneas geraram um discurso de ataque direto a tradição clássica, e o debate saem do campo das artes e vai para o âmbito político e econômico. Houve muitos movimentos nesse sentido, como o Manifesto Futurista que pregava a destruição de museus e bibliotecas como forma de apagar a memória da humanidade. Mais uma vez aparece o conceito de desconstrução e reconstrução de um ideal baseado em um tipo de fundamentalismo. Mas o agente mais significativo nesse processo foi sem dúvidas Marcel Duchamp (1887 – 1968). Um dos maiores nomes da Arte Contemporânea e um dos críticos mais ferrenhos da tradição clássica, chegou a declarar em uma entrevista à BBC em 1968: “… a expressão “obra de arte” não é importante para mim. Não me importo com a palavra “arte” porque ela se tornou tão descreditada, digamos.” Nesse ponto a entrevistadora o questiona: “Mas você de fato contribuiu para seu descrédito, intencionalmente.” E Duchamp responde: “Sim, intencionalmente, como uma forma de me livrar dela. Porque desta mesma forma muitas pessoas se livraram da religião.”

Embora as palavras de Duchamp tenham repercutido e influenciado o mundo da arte, ao analisarmos seu discurso e compararmos com o contexto histórico, é possível perceber algumas contradições entre o seu ponto de vista e o que o mercado de arte se tornou após essa mudança de paradigmas. O argumento dos modernistas era de que a tradição clássica e o virtuosismo técnico patrocinado pela igreja católica e a elite europeia, promovia uma segregação das motivações artísticas, era um sistema arrogante e ditador que determinava o que era a boa arte e mais além, o que poderia ser considerado arte e quem poderia se denominar artista. O argumento é válido, mas como a crítica é feita de forma superficial, generaliza completamente a história da arte.

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Caravaggio – A morte da Virgem

Surge uma nova situação a partir desse posicionamento. A arte contemporânea, supostamente contra a influência e poder econômico da Igreja e de grandes investidores, acaba entrando em um sistema idêntico, porém com os agentes históricos modificados. No período conhecido como “Entre Guerras”, os principais artistas deixam a Europa e vão para Nova Iorque, que se torna a nova capital da Arte Mundial, superando Paris. Aqui teremos os mesmo artistas que romperam com o “sistema sujo da arte clássica”, sendo patrocinados por jovens milionários de Wall Street, conhecidos como yuppies. Teremos uma cena clássica de repressão da família Rockfeller a respeito de um mural encomendado a Diego Rivera, que retratou Lenin na parede de uma das famílias mais poderosas do mundo, no Rockfeller Center, e enfrentou muitas dificuldades por seus posicionamentos políticos e religiosos, ele era declaradamente ateu. Esse episódio é bastante semelhante ao escândalo causado por Caravaggio, ao utilizar uma prostituta que havia morrido afogada como modelo para pintar sua obra “A Morte da Virgem”, ou Rembrandt ao pintar “A Conspiração de Claudius Civilis” em 1661 (fundadores da Holanda) e suas condições de guerreiros bárbaros, seus ferimentos e deformidades para a uma prefeitura. Ele foi obrigado a cortar sua pintura.

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Rembrandt – A conspiração de Claudius Civilis

Ao estudarmos a história da arte, devemos estar atentos aos anacronismos históricos e ao cinismo do discurso político, seja ele aplicado ao campo das artes, da filosofia, da teologia, da sociologia etc. Uma frase de Carl Jung é bastante pertinente para ilustrar a discussão partidária entre defensores da arte clássica e a arte contemporânea: “O homem saudável não tortura os outros, geralmente é o torturado que se torna o torturador.” O intuito de romper com a tradição clássica, em nome de uma nova concepção estética no caso da Arte Contemporânea, generalizando toda a história da arte como corrompida e arrogante, no fundo só validou um mesmo sistema corrompido e arrogante com roupagem nova. Ainda temos um mercado de arte que determina o que é a boa arte e quem pode ser artista, esse sistema ainda movimenta comissões milionárias.

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Debret – Escravo sendo chicoteado

Esses argumentos afastam à crítica direta ao funcionamento do sistema mantenedor do mercado da arte e atacam diretamente o produto final das produções artísticas. Casos similares dos desacordos que funcionam da mesma forma: Dificilmente iremos ler que as vanguardas artísticas da arte moderna só foram possíveis através de saques constantes às tribos africanas, que deram origem ao Musée de l’Homme, um museu etnográfico localizado na Place Du Trocadéro em Paris, onde Picasso, Modigliani e Matisse foram fortemente influenciados pelas máscaras, esculturas, ornamentos e artefatos, e partir dessa experiência deram origem as suas “revoluções estéticas”.

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William Turner – O Naufrágio

Em um século onde o acesso à informação é tão facilitado, não conseguiremos enxergar a denúncia de Caravaggio a respeito da precariedade do local onde vivia, com suas prostitutas, mendigos e clérigos vaidosos? A liberdade de expressão na pintura de William Turner? As ironias de Goya? A escravidão desnuda na pintura de Debret? O que conseguimos romper, não foram os cânones da Arte Clássica, rompemos com a capacidade de nos sensibilizar com a condição humana representada através da arte. Preterimos tudo por uma arte formalista, estéril, com sensações pré-fabricadas e efêmeras. Ou além, por uma arte que pode nos ser útil, que possa combinar com nossos móveis ou apenas enfeitá-los. Essa ruptura, abriu uma caixa de pandora. Não somente nossa relação com a arte está superficial, mas também nossas relações estão se tornando fugazes. Nós todos, nos tornamos cínicos.

Francisco Goya – Gravura
Fonte das imagens:

https://www.google.com/culturalinstitute/beta/u/0/asset/LwFch0SXuzBAIw

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34496

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4136170

2 comentários sobre “Crítica social na Arte Clássica: Será possível revisitar o passado?

  1. Quem ou o quê exatamente preterimos? Percebo dois tipos básicos de pessoas: aquelas que ainda não se tornaram artistas e as que já se aceitaram como tal. Nossas relações não estão se tornando fugazes, pelo contrário, andam cada vez mais sólidas, como cubos de gelo no mundo líquido de Bauman. A questão é que os olhares não são mais os mesmos, evoluímos. O mesmo contexto, repetidas vezes por entre os períodos de tempo na história, pode caber em uma mente jovem tal como caberia a um camelo assustar-se ao olhar no espelho a imagem de um dromedário. Como parte dessa “evolução” terminamos por subtrair dos artistas os primeiros degraus de uma escada que nunca terminará.
    A genuína arte hoje está no ser, angustiado, demente e errante, que perambula pelos becos inóspitos de seu inconsciente procurando desesperadamente retornar ao início do próprio ciclo,

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