OBRA DE ARTE DA SEMANA: O mosaico do Inferno no Batistério de Florença


Coppo di Marcovaldo (atribuição), Inferno, mosaico, 1250-70. Batistério de São João, Florença, Itália.

A cúpula do Batistério de São João, localizado frente à Catedral Santa Maria del Fiore – o Duomo -, em Florença, é ricamente decorado. Sua fachada é coberta de mármores de diversas cores e seu interior é repleto de mosaicos em estilo bizantino. As figuras estilizadas compostas de pedacinhos de pedras coloridas e o fundo dourado, refletindo a luz divina através de folhas de ouro prensadas entre pastilhas de vidro, dos mosaicos são característicos do Império Romano do Oriente, tendo como capital Bizâncio ou Constantinopla.


Dentre as muitas figuras e cenas representadas, uma das que chama mais a atenção do visitante é o mosaico do Inferno, o maior desse tipo em toda a Europa, com a imagem imponente de Satã ao centro, rodeado de animais infernais e pecadores torturados. A cena, segundo Irene Hueck próxima às imagens do Inferno em um mosaico em Torcello, perto de Veneza, e em um manuscrito conservado em Paris, faz parte de uma representação maior do Juízo Final sobre o altar. Como é tradicional na arte religiosa, o Inferno está representado à esquerda do Cristo em majestade, enquanto que os benditos estão a sua direita, sendo abençoados por ele. É importante notar a dimensão dada à figura do Cristo, imensamente maior do que as outras personagens, incluindo Satã e toda a cena do Inferno. Somente em relação ao próprio Inferno Satã é gigantesco. Ou seja, através desse programa iconográfico certamente muito bem refletido, a ideia era mostrar àquele que estaria se tornando cristão – o batistério era geralmente aberto somente duas vezes por ano, na ocasião da festa de Pentecostes e da Páscoa para batizar os novos fiéis – o perigo do pecado e das tentações do Diabo, que, entretanto, é vencido pelo poder e pela majestade do Cristo.

Nesse exemplo, o Diabo possui corpo humano, verde acima do torso musculoso, que faz alusão aos pecados carnais, e marrom nas pernas. Sua cabeça é parte humana, parte monstruosa, com chifres, provenientes das representações de deuses pagãos demonizados pela Igreja, e orelhas de bode ou de asno, atributo de Lúcifer e do Anticristo significando sua natureza cruel, das quais saem serpentes – animal que instigou Eva a comer o fruto proibido no Paraíso, causando sua expulsão e a condenação de toda a humanidade – que devoram pecadores nus. Em sua boca, vemos um homem sendo engolido. Ele não possui asas e está sentado sobre mais cobras, que também devoram danados, e sob seus pés e em suas mãos vemos ainda outros pecadores nus. A imagem, com homens sendo devorados por um monstro, lembra aquelas que mostram o deus greco-romano Cronos-Saturno devorando seus filhos, refletindo a antiga concepção dual da divindade como princípio criador e destruidor. Sob ele há uma abertura da qual sai fogo, assim como a esquerda da composição, e a sua volta existem animais diabólicos, por exemplo, lagartos – de certa forma, cobras com patas – e sapos torturando e devorando pecadores, seres típicos das imagens do Inferno medievais que, segundo o Apocalipse de João, se arrastariam sobre a Terra quando Satã fosse libertado do Inferno, antes de ser derrotado pelo Cristo. Eles também significam sua natureza insaciável.

Ao fundo da composição, uma paisagem montanhosa e árida em contraste com o dourado, emanação da luz divina.

A direita de Satã, encontramos um amontoado de pecadores, estes ainda vestidos, sendo gradativamente levados pelos demônios azulados e esverdeados para suas respectivas torturas. Os pecadores foram tirados de suas sepulturas por outros diabos alados, como aparece na imagem ao lado, sob os pés do Cristo, na qual, à direita, os mortos são acolhidos por anjos, e a esquerda, por diabos que os encaminham ao Inferno.

A esquerda de Lúcifer os danados já estão sendo torturados de diversas maneiras – um deles está sendo até mesmo assado no espeto! -, por diabinhos esverdeados ou azulados deveras atarefados e, por vezes, armados bastões pontiagudos.

Não só os olhos do espectador contemporâneo o satã de Coppo di Marcovaldo atrai. Um grande número de artistas na Itália, posteriores à realização do mosaico, se inspiraram dele para criar suas próprias representações de Lúcifer e seus demônios, que, antes do mosaico geralmente eram negros, mostrando assim sua proximidade com a escuridão. O afresco de Giotto na Capela dos Scrovegni, em Pádua, é o exemplo mais famoso. Segundo Lorenzo Lorenzi, além da influência do mosaico florentino, o artista provavelmente foi influenciado pela Divina Comédia de Dante, terminada quase ao mesmo tempo em que o afresco foi pintado. Os dois se conheciam há alguns anos e é possível que Giotto conhecesse os planos de Dante para descrever seu Inferno, com círculos de condenados separados pelo tipo de pecado, como podemos ver na pintura.


Giotto, Inferno, afresco, cerca de 1305. Capela dos Scrovegni, Pádua, Itália,

Bibliografia:

Lorenzo LORENZI, Devils in Art: Florence, From the Middle Ages to the Renaissance, Florença, Centro Di, 2006 (2a edição).

Matilde BATTISTINI, Symboles et Allégories, Paris, Hazan, 2004. p. 156-158.

Fonte das imagens:

Fotografias da autora

By Sailko – Own work, CC BY 3.0, commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=41886203

By Sailko – Own work, CC BY 3.0, commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=41886205

http://www.chebellezzatour.com/blog/the-monuments-of-piazza-del-duomo-in-florence/

http://atlantedellarteitaliana.it/

*Sobre a coluna OBRA DE ARTE DA SEMANA: Aline Pascholati, Marina Franconeti e Wagner Galesco se alternam escrevendo sobre obras de arte de diversas épocas às terças-feiras.

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