Caravaggio, Judite e Holofernes, óleo sobre tela, 144 cm × 195 cm, 1599. Conservada na Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma, Itália.
Em tempos de polêmicas e revoltas em relação a temáticas e a artistas contemporâneos, um tribunal popular se instaurou nas redes sociais para julgar o que é ou não, arte, provocando assim calorosos debates a respeito da produção artística brasileira. Ora, mas se pensarmos que as artes nunca estiveram presentes nas discussões em mesas de bares, almoços dominicais, nos cafés das empresas e agora disputam as pautas cotidianas que antes eram ocupadas pelos jogos e resultados dos campeonatos de futebol dos finais, com o último capítulo da novela, poderíamos enxergar toda essa comoção nacional como uma mudança na mentalidade e de certo modo, a valorização das artes, não é mesmo? Poderíamos, não fosse um aspecto fundamental a respeito da visão genérica sobre arte, a qual as últimas repercussões têm demonstrado ser compartilhada por grande parte de nossa população.
Tratar dessa questão, tanto no ambiente escolar, quanto em qualquer outro ambiente, é uma tarefa árdua, que requer sensibilidade, compreensão e paciência. E para abordar essa questão, escolhi mais uma vez uma obra do mestre italiano Caravaggio. O motivo da minha escolha é deveras simples. Caravaggio foi um dos artistas mais polêmicos de sua época, mesmo trabalhando com a pintura tradicional e utilizando-se dos temas considerados dignos de serem pintados: temas bíblicos, históricos e mitológicos. O que torna Caravaggio um artista único, é que não importava qual o tema que lhe fosse encomendado, ele sempre tratava da natureza humana em suas obras. Não foi diferente com a obra “Judite e Holofernes”.
O tema aparece no velho testamento no livro de Judite, capítulo 13 (da Bíblia católica), e narra como a jovem viúva de Manasses, mata o capitão a serviço de Nabucodonosor, Holofernes, e livra seu pequeno país da opressão do exército inimigo. Dada a referência para consulta daqueles que desejam obter o texto na íntegra, não vou aprofundar o texto bíblico.
A primeira ruptura provocada por Caravaggio na obra é a composição. O teor de realismo e violência na cena, não era comum para a época. A iluminação atravessa a pintura, passa pelo corpo de Holofernes e explode na personagem principal Judite. A figura de Bagoas (segundo historiadores, a personagem Bagoas foi construída possivelmente através da influência dos estudos de Leonardo Da Vinci na obra de Caravaggio) observa atenta a toda cena, diferentemente do relato bíblico que diz que a serva da viúva Judite fechou a tenda por fora e ficou de guarda, e transmite a ideia de que uma anciã presente na cena corrobora o ato da personagem como um ato sábio. Toda a dramaticidade se dá ao domínio do mestre italiano na utilização de luz e sombra, e o fato dele ter capturado exatamente o momento em que o sangue jorra do ferimento, faz com que o espectador segure a respiração (o que não ocorre, por exemplo, em outra obra, “Davi e Golias” onde Davi segura a cabeça de Golias após o embate).
Contexto histórico
A pintura foi encomendada à Caravaggio por Ottavio Costa, um banqueiro genovês muito poderoso de Roma, quando o artista ainda estava a serviço do Cardeal del Monte. Essa obra surge no momento em que a Igreja Católica lutava pela contra reforma e lutava contra a heresia na época. No sentido simbólico, Judite representa a “Virtude” prevalecendo sobre o “Mal”, associado à imagem dos protestantes na época. Um dos motivos pelos quais o livro foi retirado da Bíblia pelos protestantes, possivelmente pelo papel protagonista da mulher.
Influência sobre outros artistas
Artemisia Gentileschi: Uma das maiores artistas do período barroco, que retomou o tema da obra 20 anos após Caravaggio, para denunciar o estupro que sofreu por Agostino Tassi e seu cúmplice Cosimo Quorli. Seu quadro possui muitos elementos da técnica de Caravaggio, o que mostra que o artista foi uma grande influência em sua obra.
Artemisia Gentileschi, Judite decapita Holofernes, óleo sobre tela, 158.8 × 125.5 cm, 1611-1612. Conservada no Museu de Capodimonte, Nápoles, Itália.
Francisco Goya: o pintor recorreu ao tema 220 anos após Caravaggio, em sua série de “Pinturas Negras” para tratar do poder das mulheres sobre os homens, uma vez que o artista já estava com mais setenta anos e morava com sua modelo Leocadia Zarrila, muito mais nova que ele. Sob uma análise psicanalítica, a obra de Goya no contexto de sua produção faz alusão à castração e a impotência causada pela idade.
Conclusão
Para que possamos analisar uma obra de arte e formar uma opinião crítica a respeito da qualidade da mesma, é necessário decifrar aquilo que o artista está tentando nos transmitir. E para isso é necessário que não nos prendamos ao objeto final, mas sim que tentemos recriar todo o processo do artista desde a concepção da ideia, a escolha na composição e da paleta de cores, e as escolhas que este faz para chegar ao efeito desejado. E a partir dos efeitos que a obra nos causa, poderemos a partir de nossos critérios pessoais, julgar o valor da obra, mas nunca determinar quem pode ou não pode ser artista ou, o que é ou não é arte. Estudar arte é aprender a ler o mundo de diversas formas diferentes.
Bibliografia
BOZAL, Valeriano, Pinturas Negras de Goya, Tf. Editores, Madrid, 1997.
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Cohen, Elizabeth (2000), «The Trials of Artemisia Gentileschi: A Rape as History», The Sixteenth Century Journal, 31 (1): 47–75.
Gérard-Julien Salvy, Le Caravage, Gallimard, col. «Folio», 2008, pag. 193, ISBN 978-2-07-034131-3
Michel Hilaire, Caravage, le Sacré et la Vie, Herscher, coll. «Le Musée miniature» – 33 pinturas explicadas ISBN 2-7335-0251-4, pag. 28-29.
Publifolha (1911). Grandes pinturas. [S.l.]: Dorling Kidersley. 255 páginas. p.96-97.
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Fontes das imagens:
en.wikipedia.org/wiki/File:Artemisia_Gentileschi_-_Judith_Beheading_Holofernes_-_WGA8563.jpg
en.wikipedia.org/wiki/Judith_Beheading_Holofernes_(Caravaggio)#/media/File:Caravaggio_Judith_Beheading_Holofernes.jpg