O crime acabou de acontecer; o sangue fresco ainda escorre do corte repleto de crueldade o qual, certeiro, separou o pescoço do resto do corpo. Os olhos que antes levavam desespero ao mundo agora são um espelho estarrecido de finitude: então eu também posso morrer, então não sou imortal. Sobre a cabeça, aquelas que viviam em precária harmonia – unidas em torno do horror inspirado pela sua dona – entregam-se à feroz luta da sobrevivência. Irmãs até então inseparáveis atacam-se com raiva; existem aquelas que tentam aproveitar até o último resquício de vida do ser que lhes animava e dava propósito, sorvendo até a derradeira gota teimosa de sangue; uma delas aproxima-se, sorrateira, do olho vítreo, imaginando qual o gosto da carne de Deus. Outras cobras, pela primeira vez descobrindo o que é ser livre, esgueiram-se sobre a pedra onde jaz a cabeça, sem imaginar a solidão que lhes espera nesse mundo em que deixarão de ondular e passarão a rastejar por migalhas de sol. Enquanto as serpentes decidem seu destino (algumas gritam em silêncio para o sol indiferente), os vermes se aproximam, famintos, ansiosos para possuírem a cabeça sem vida e que, no passado, transformava carne em pedra. Tudo escorre em direção ao inexorável fim, pois aquilo que começa um dia acaba, mas ninguém nunca nos avisou sobre o fedor acre de sangue coagulado, ninguém falou sobre a solidão do vento a mexer nos cabelos insensíveis, ninguém nos avisou que a vida continua, pasma e patética, depois que morremos – e que, na história do universo, somos meros suspiros impregnados de efemeridade, nunca uma respiração.
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