“Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.”
Em uma mistura que envolve solidão, imensidão interior, desvario, resignação, angústia, inquietação e uma dose de um niilismo realista, Álvaro de Campos narra o poema da Tabacaria. Estaria ele a escrever para Vianne Rocher (Juliette Binoche) personagem do filme “Chocolate” de Lasse Hallström? O canto de Pessoa seria o vento do norte que conduzia a moça pelos cantos do mundo? Estaria o poeta lusitano em acordo com o último Heidegger a nos mostrar a verdade onde ela mora, na poesia? Os chocolates comidos apresentam um problema às religiões que querem pra si o estatuto de metafísica maior? A mulher seria o negativo da mordaça religiosa? O chocolate de Pessoa é a maçã de Eva? Comer chocolate é padecer no paraíso negado da carne? O que seria o paraíso: o altar? Ou o gosto do chocolate? Produzir chocolate é construir edifícios metafísicos?
A chegada de Vianne a um pequeno vilarejo, que tinha na batuta do conde todas as dimensões de imaginação, fora de fato uma ruptura revolucionária dentro da construção metafísica dos moradores. Claro que a sua dimensão também não restaria inerte. Somos o mundo, nele nos criamos. Simultâneos à sua fundação. Assim, a chocolateria de Vianne, uma nômade que seguia os ventos do norte, começara a se insinuar ao vilarejo. Como um cheiro novo que aguça paladares fatigados. E o novo, ah, nem sempre o novo respeita a tradição. Contudo, tradição aqui, pode-se entender como uma ideologia construída, fundada no medo, no castigo, própria de uma interpretação do cristianismo. O conde, kantiano nos hábitos, procurava manter a cidadela em seu controle. Cada qual guardando seu lugar. As ações orquestradas. Sem jazz, apenas partituras sendo seguidas à risca.
A componente ideológica que chamamos de metafísica religiosa paira sobre a pequena vila. Ali as mulheres não possuem lugar, senão aqueles aos quais uma cultura machista lhes confere. Nesse sentido, a chocolateria seria a fecundação nova que se ausentava da cidade. O sorriso das mulheres é um elemento que o chocolate cria. O rigor da religiosidade do local não permite esse abuso. O chocolate é o feminino que fecunda o ar da cidadela. Dessa relação vão nascer filhos. Os pais não são os mesmos. A linhagem da cidadela não se manterá. A ideologia da religião que violenta a imaginação e que nega a dimensão carnal da vida vai sendo levemente deixada pra trás. Há violência. Em toda ruptura há. O amor carece revolução pra brotar. Em um barco chega o amor de Vianne. Em seus olhos resta toda a metafísica do chocolate que agora mela a dureza do chão invernoso que reinava na cidadela.
O chocolate ensina, diria Pessoa. A religião ali desensinava. O povo não poderia sonhar. Em verdade. A metafísica do chocolate, nietzschiana talvez, a confrontar a escuridão da metafísica religiosa. Poderíamos pensar o filme como uma ode ao sonho. Exatamente como Pessoa, que solicita que sua pequena suja coma chocolates. Sem pudores. Com a exata dimensão do desvestimento que os momentos de ruptura trazem. Com a nudez do real. Na mesma imensidão com que os amores nos arrebatam e deles não podemos nos desvencilhar. Com a percepção de que inventar é jeito de viver sem amarras. Que dentro do próximo chocolate mora o desejo. Lutar contra ele, esse gosto que nos consome, pode ser ao mesmo tempo não se entregar ao vento que sopra e traz o novo. Embalado – em forma de mulher, homem, padre ou chocolate. Mas que compõe a poesia que é o humano: metafísica de si, embalado pelo vento do olhar do outro, infinito e cheio de gosto.
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