A imagem de Ofélia e outras personagens de Shakespeare foram inspirações frequentes para os pintores vitorianos que usavam passagens da obra para representar as cenas imaginadas. Uma das mais reconhecidas é Ofélia (Ophelia,1851-2), de Sir John Everett Millais. Inerte nas águas, Ofélia se encontra rodeada por flores em um vestido prateado e temos, pelo olhar vago, apresentado o instante em que a vida se esvaiu da jovem.
O trecho de Shakespeare tem a imagem tornada clássica posteriormente da personagem. Ofélia se lança ao rio, cantando músicas antigas, como uma sereia. As vestes se expandem e, por um tempo, permanecem suspensas. Até que o peso vai aos poucos levando-a ao fundo e o vestido fica enlameado pela densidade da água. A representação da personagem trágica era frequente nos Salões, aparecendo regularmente nas exposições da Royal Academy. Como exemplo, Arthur Hughes exibiu sua versão no mesmo ano em que a pintura de Millais foi exposta.
Com efeito, tratarei aqui de algumas passagens de um artigo que publiquei sobre a idealização de Ofélia como uma representação comum, do século XIX, à morte de personagens femininas. Usando a leitura de Shakespeare como referência, os indícios de loucura de Ofélia passam a surgir após o choque em ver o seu pai, Polônio, morto por Hamlet, até culminar em seu suicídio. O diálogo entre dois coveiros no quinto ato da peça insinua que a jovem teria se matado, e eles questionam se “deve ser sepultada em terra santa aquela que voluntariamente conspira contra a própria salvação” (SHAKESPEARE, 1979, p.301).
Millais escolhe retratar a morte de forma sublimada pelas diversas flores e cores intensas que, em vez de indicarem o horror da morte de uma jovem, emolduram um corpo que aparenta estar apenas dormindo. Aqui, o voyeurismo não se encontra pela exposição da nudez feminina. Ainda assim, a obra ressalta a contemplação desta figura feminina pelo viés do auto sacrifício causado pelo ato de Hamlet e a morte do pai. Portanto, o olhar, no quadro de Millais, apresenta “um lirismo que a natureza emprestaria à cena a fim de conceder uma delicadeza na morte, amenizando-a a partir da figura de Ofélia lançada às águas como quem repousa no leito”.
Há, porém, uma sutileza que não pode passar despercebida no texto de Shakespeare, que é o fato o qual intensifica o abalo psicológico de Ofélia. Na cena em que se considera a loucura de Ofélia, ela conversa com a rainha através de uma canção ambígua. Trata-se de uma breve história de uma jovem que perde a virgindade e se vê desiludida pelo amado:
“É dia amanhã de São Valentim.
Bem cedo estarei à sua janela,
Donzela que sou, pra ser Valentina.
Ergue-se ele então, sua roupa veste,
Abre-lhe a porta de seu dormitório.
Donzela ela entrou, mas quando saiu
Não mais era como ali tinha entrado”
E Ofélia prossegue:
“Por Jesus Cristo e Santa Caridade,
Coitada de mim! Vergonha, meu Deus!
Se isto o moço faz, tendo ocasião,
Merece, por Deus, censura severa.
– Antes – diz ela – de me derrubar,
Tu prometeste comigo casar.
– Pela luz do sol, tê-lo-ia feito,
Não tivesses tu, vindo pro meu leito”
O contato de Ofélia e Hamlet, no decorrer da peça, aparenta ser mais um segredo entre a corte. Ofélia chegou a simular uma conversa com Hamlet, que estava sendo ouvida pela rainha, o pai Polônio, e o rei. A conversa que se segue é obscura e Hamlet se mostra agressivo com ela, ironiza a honestidade de Ofélia enquanto ela afirma que guarda dele lembranças que gostaria de lhe devolver (SHAKESPEARE, 1979, p.253). Hamlet reconhece que Ofélia está, nesta conversa, representando um papel. Contudo, ele acrescenta “amei-te antes”, ao que Ofélia rebate “Foi, na verdade, meu senhor, o que me fizestes acreditar”, o que se aproxima do verso da canção posterior. E, por fim, Hamlet responde “Entra para um convento” (SHAKEAPEARE, 1979, p.254).
No original, Shakespeare faz uso da palavra “nunnery” que, de acordo com a nota do tradutor da edição usada nas citações anteriores, tem um sentido, como gíria, de prostíbulo. Para reforçar a referência do tradutor, de acordo com o site da British Library, o primeiro registro do termo nunnery, no Oxford English Dictionary, consiste no sentido de “bordel”, feito em 1593 na obra Christ Teares of Jerusalem, de Thomas Nash. Em adição, no ato 3 de Hamlet, no original o protagonista fala a Ofélia “Get thee to a nunn’ry” (3.1.120; 128–29; 136-37; 139). Estamos também diante de um fato curioso, pois no século XIX, tanto artistas franceses quanto britânicos e americanos, representavam o máximo da delicadeza e auto sacrifício feminino na forma da freira ou da mulher no leito de morte, ou retratavam, em contraste, as cortesãs, as quais por vezes também sucumbiam à morte na pintura e na literatura. Assim, a loucura de Ofélia parece muito bem justificada, se considerarmos que houve o desvirginar da jovem, a provável recusa posterior de Hamlet, a perda desse amor e o qual será ainda responsável pelo assassinato do pai de Ofélia.
Segundo informações de descrição da obra pelo Tate Museum, a modelo de Ofélia foi Elizabeth Siddal, uma das favoritas dos pré-rafaelitas que mais tarde se casou com Rossetti. À título de curiosidade, ‘Lizzie’ foi obrigada a posar por um período de quatro meses em um banho cheio de água mantida quente por lâmpadas embaixo. Certa vez, as lâmpadas se apagaram, fazendo-a pegar um resfriado severo. O pai da modelo ameaçou Millais com uma ação legal até ele finalmente concordar em pagar as contas do médico.
O simbolismo da obra merece também atenção. A representação das flores teve um cuidado à parte por Millais. Com características minuciosas da botânica, as plantas povoam as águas e fazem referências também ao texto shakespeariano. Pela descrição do Tate Museum, as rosas perto da bochecha e do vestido de Ofélia possivelmente fazem alusão a seu irmão Laertes que a chamou de “rosa de maio”. Com efeito, “o salgueiro, a urtiga e a margarida estão associados ao amor, à dor e à inocência abandonados”. As violetas, que Ofélia usa em uma corrente em volta do pescoço, “representam fidelidade, castidade ou morte dos jovens”. A papoula significa morte. Todo o conjunto de flores, na verdade, reforça o caráter feminino e a associação habitual da flor à fertilidade e à inocência.
Embora a composição das flores e das cores torne o quadro um exemplo de grande mérito na execução, é o olhar de Ofélia que consegue, ainda assim, retomar a melancolia do abandono da personagem feminina e de seu desespero. É a expressão facial, advinda do trabalho da modelo e da recriação do artista, que fornece certa destituição do mero voyeurismo. Na obra de Arthur Hughes, por exemplo, Ofélia é só uma jovem pequenina e delicada repousando sentada no tronco de uma árvore, sem necessariamente ser apenas a representação da personagem de Shakespeare. Poderia muito bem ser mais uma ninfa na floresta, se não houvesse a moldura em torno do quadro com o trecho de Shakespeare inscrito para delimitar a representação.
No caso da Ofélia de Millais, porém, há a presença desse tom onírico das ninfas, com a adição pertinente do olhar da personagem que dá a explicação necessária para anunciar que se trata de Ofélia, uma jovem já morta nas águas. São os olhos da modelo e da personagem, forjando a ausência de vida, que preservam resquícios do choque e até um possível desconforto no tom mórbido de se escolher representar a morte feminina por essa perspectiva. Apesar das flores e da insistente delicadeza idealizada, é o olhar de Ofélia no quadro que ainda resiste e corporifica o sofrimento da personagem clássica de Shakespeare, dando um passo além entre as idealizações dos corpos femininos desfalecidos entre as flores.
Referências bibliográficas
DIJKSTRA, B. Idols of perversity. New York: Oxford University Press, 1986.
FRANCONETI, Marina. “AS IDEALIZAÇÕES DO FEMININO E AS OBRAS DE MANET NO SÉCULO XIX”, p. 165-182 . In: . São Paulo: Blucher, 2018.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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