OBRA DE ARTE DA SEMANA: A igreja de Auvers de Van Gogh ou a expressão tempestuosa de uma morte iminente

« […] a construção parece violácea contra um céu de um azul profundo e simples de cobalto puro, as janelas de vitral parecendo como manchas azuis ultramar, o todo é violeta e em parte alaranjado. No primeiro plano, um pouco de verdura florida e areia ensolarado rosa. »


Vincent Van Gogh, A igreja de Auvers-Sur-Oise, óleo sobre tela, 94x74cm, 1890. Conservada no Musée d’Orsay, em Paris, França.

Assim descreve o próprio Van Gogh a tela denominada Igreja de Auvers-sur-Oise em carta de 1890 à sua irmã, Willemina.

A criação gótica do século XIII ocupa a tela de maneira imponente, enquadrada pelo verde vibrante e pelo céu azul cobalto que domina quase toda a composição caracterizada por pinceladas de tons mais escuros sobre superfícies uniformes de cores mais claras, criando uma superposição de elementos cromáticos. Se seguirmos o caminho que serpenteia em frente à igreja, podemos ver à esquerda, uma mulher que se distancia em direção à algumas árvores longínquas, com fragmentos de telhados em meio à elas, evocando um vilarejo. O ponto de vista da composição é ligeiramente elevado e o ponto de fuga leva o olhar do espectador à união dos caminhos de areia.

Quanto ao tema, este se aproxima de obras anteriores do artista, da época em que ele vivia com seus pais em Nuenen, na Holanda. Tratam-se duas telas do ano de 1884: A saída da igreja de Nuenen, conservada no Museu Van Gogh em Amsterdã, e A torre da velha igreja de Nuenen, desaparecida desde seu roubo do mesmo museu em 2002.


Vincent Van Gogh, A saída da igreja de Neunen, óleo sobre tela, 41,3×32,1cm, 1884-1885. Convervada no Van Gogh Museum, em Amsterdã, Países Baixos.


A torre da velha igreja de Neunen, óleo sobre tela, 65x80cm, 1885. Conservada no Van Gogh Museum, em Amsterdã, Países Baixos.

O tema da igreja, tratado várias vezes, poderia ter sido influenciado pela vida pastoral de seu pai e sua tentativa fracassada em seguir carreira religiosa. Após seu período parisiense entre 1886 e 1888, o pintor havia abandonado o tema, retomado ao fim de sua estada no hospital de doenças mentais de Saint-Rémy de Provence. Na carta à sua irmã, mencionada no inicio do texto, ele diz:

«  É quase a mesma coisa que os estudos que eu fiz em Nu[e]nen da velha torre no cemitério, somente que agora a cor é mais expressiva, mais suntuosa. »

Tomado de nostalgia do norte, essas imagens voltam à sua mente, com diferenças claras de execução, como mencionado pelo próprio artista. Além das cores, os pontos de vista também são diferentes. A igreja de Auvers é tratada a partir da cabeceira, enquanto que nas obras mais antigas, a construção de Nuenen é vista do cemitério e as cores escuras conferem um ar bem mais sombrio e contido.

Inclusive, foi depois do seu período parisiense, entre 1886 e 1888, que Van Gogh abandonou o preto e o marrom e começou a explorar a cromatização intensa que se tornaria uma de suas marcas registradas. Na pintura em questão, não existe uma grande abundância de tons vibrantes, porém, aqueles que os são, azul, verde e laranja, dominam boa parte da composição. O cobalto do alto da tela, mais escuro perto dos limites desta, aliado à suas pinceladas retorcidas, conferem ao céu um ar denso, pesado e tempestuoso. Talvez, um reflexo do estado psicológico do artista, que apesar de uma aparente melhora e, finalmente, um tímido início de reconhecimento no meio artístico, se suicidará um mês após a pintura dessa obra.

Inclusive, um dos traços marcantes de Van Gogh é essa exasperação presente visualmente em suas obras, caracterizada por pinceladas dramáticas, marcantes e rápidas, cores vibrantes, além de formas sinuosas que evocam o movimento e a atmosfera inconstante digna de um sonho. Em suas criações, as cores abundantes não são necessariamente a tradução de alegria, mas de euforia e desespero próprios à loucura.

Essa pintura, junto a outras desse período de cerca de dois meses de criação intensa em Auvers-sur-Oise, totalizando 70 obras – ou seja, mais de uma por dia – podem ser vistos como os últimos esforços expressivos e inconscientes do artista antes de sua morte.

Van Gogh, artista que vendeu somente uma obra durante sua vida e sobrevivia as custa de seu irmão Theo, marchand em Paris, será a origem da figura do « artista maldito ». A expressão é usada para descrever a visão romantizada do artista sofredor que vive para sua arte sem ser admirado pelo público, caso relativamente pouco frequente entre os grandes nomes da arte.

Inspirado pelos impressionistas e pontilistas, alguns dos quais teve contato em seu período parisiense, ele influenciará, por sua vez, os fauvistas, será grandemente admirado pelos expressionistas, especialmente Kirchner e os artistas do grupo Die Brücke (A ponte), mas também por Kandinsky e os pintores do Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul).

Atualmente, o artista, sua obra e lenda fazem parte da cultura pop – sendo frequentemente lembrado por sua loucura e pela automutilação da orelha esquerda, teoria recentemente colocada em dúvida. Seu renome é tão grande a ponto de que referências ao personagem apareçam em programas de televisão – por exemplo, Os Simpsons – sendo exatamente a mesma pintura tratada nesse texto, o ponto de partida da aventura da vez no episódio Vincent e o Doutor, na série Doctor Who.


Vincent Van Gogh, Autorretrato com a orelha cortada, óleo sobre tela, 60,5x50cm, 1889. Conservado na The Courtald Gallery, em Londres, Inglaterra.

Fonte primária:

Albert AURIER « Vincent Van Gogh » in Mercure de France (Paris, 1890).

Bibliografia

Julio Carlo ARGAN, Frederica ARMIRAGLIO, Van Gogh, Paris, Flammarion, 2005.

Pierre CABANNE, Van Gogh, Paris, Terrail, 2002.

Gabriele CREPALDI, Chantal MOIROUD, L’art au XIXe siècle, Hazan, Paris, 2005.

Jean-Louis FERRIER, Sophie MONNERET, L’aventure de l’art au XIXe siècle, Paris, Chêne : Hachette, 2008.

Michel LACLOTTE et alii, Dictionnaire de la peinture, Paris, Larousse, 2003.

Michel LACLOTTE et alii, Orsay : la peinture, Paris, Ed. Scala, 2003.

Pierre LHOTE, Recherches sur la technique picturale de Vincent Van Gogh : essai, Berna Berlim Nova Iorque, P.Lang, 1999.

Jill LLOYD, Van Gogh et l’expressionnisme, cat. Expo. (Amsterdã, Van Gogh Museum, 24 de novembro de 2006 – 4 de março de 2007 e Nova Iorque, Neue Galerie, 23 de março – 2 de julho de 2007), Paris, Gallimard, 2006.

TILBORGH, Louis Van et alii, Millet-Van Gogh, cat. Expo. (Paris, Musée d’Orsay, 14 de setembro de 1998 – 3 de janeiro de 1999), Paris, Rénion des musées nationaux, 1998.

Evert Van UITERT et alii, Van Gogh : peintures : exposition, Milão, A. Mondadori arte, Roma, De Luca edizione d’arte, Amsterdã, Rijksmuseum, 1990.

Ingo F. WALTHER et alii, Vincent Van Gogh : l’oeuvre complet, peinture, Colônia, Tachen, 2001.

Stefano ZUFFI et alii, Petit encyclopédie des peintre de A à Z, Paris, Solar, 2005.

Sites:

http://www.musee-orsay.fr (Consultado em 20 de fevereiro de 2010).

http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.jsp (Consultado em 15 de março de 2010).

Imagens:

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vincent_van_Gogh_-_The_Church_in_Auvers-sur-Oise,_View_from_the_Chevet_-_Google_Art_Project.jpg https://www.vangoghmuseum.nl/en/collection/s0003V1962

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vincent_van_Gogh_-_The_old_church_tower_at_Nuenen_(%60The_peasants%27_churchyard%27)_-_Google_Art_Project.jpg

http://courtauld.ac.uk/gallery/collection/impressionism-post-impressionism/vincent-van-gogh-self-portrait-with-bandaged-ear

*Os posts OBRA DE ARTE DA SEMANA são publicados todas as terças-feiras.

 

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