Obras Inquietas 10: “O impossível” (1940), Maria Martins
Não vemos, mas está o tempo todo ali, à espera: alguns chamam de amor, fogo que arde sem se ver, mas não passa de desespero, solidão e feromônios combinados. Assim que lhe enxerguei, o abismo faminto que se esconde em mim reconheceu o seu como se tivesse encontrado um irmão perdido. No meio da multidão vazia que nos cercava, só as suas profundezas chamavam minha atenção, com seu gosto de lágrimas recolhidas, o som sibilante que uma serpente faz enquanto ondeia em busca da vítima. Aproximei-me, seduzido pelo invisível canto de sereia que sai da sua alma, e, quando enfim nos olhamos, foi um misto de surpresa e de inexorabilidade, pois estávamos fadados a este encontro antes mesmo de saber que existíamos. O mundo deixou de ser; as pessoas sumiram, enquanto o meu abismo projetava os dentes para lhe engolir inteira, desejando levar medos e angústias para dentro da sua vida, e eu sentia a cobra sonolenta que até então habitava o seu íntimo erguendo-se em resposta, presas pontiagudas lutando para vencer a sombra que sai de mim e deseja possuí-la, engolfar seus pensamentos, submetê-la aos meus desejos. Nossos corpos sorriem, atraídos, enquanto sentimos o fascínio nos levar para dentro do ringue, pois amar alguém é um andar solitário entre as gentes, é lutar desde o primeiro segundo por supremacia; nunca é caminhar juntos, mas forçar outro a caminhar ao nosso lado. Logo iremos nos amar, transar, sorrir juntos, rir, mas também iremos brigar, nos odiar, nos ofender, nos ridicularizar. Amor é ter lealdade com quem nos mata, e em breve nossas almas digladiarão em silêncio buscando uma vitória impossível, mordendo-se como leões sedentos por sangue, mas hoje, no dia em que enfim encontramos um sentido para respirar, nada disso importa; hoje, somos a sinfonia de dois abismos cantando juntos no meio da noite eterna do mundo.
Fonte das imagens:
http://casavogue.globo.com/MostrasExpos/noticia/2013/06/fala-se-de-memoria-maria-martins.html
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