Das figuras mais controversas, criativas e singulares da literatura sul-riograndense está certamente José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo. Professor, viveu no século 19 em Porto Alegre e, durante os meses em que enlouqueceu, escreveu peças de teatro incrivelmente malucas, interessantíssimas. Na época não foi reconhecido, tampouco o é hoje, embora já existam trabalhos que estão redescobrindo sua obra. Cães da Província, de 1987, tese de doutorado de Luiz Antonio Assis Brasil, presta então homenagem a essa figura meio enigmática que foi Qorpo-Santo.
A sociedade do romance é a do século 19, sendo então fiel à época em que o protagonista de fato viveu no mundo real. Uma diferença muito importante, às vezes esquecida ou deixada de lado, é a separação entre História e Literatura. É possível se deixar enganar pela prosa do narrador e julgá-la fato empírico e passar a considerar a vida de Qorpo-Santo a partir do romance. Certamente houve pesquisas históricas para elaboração do livro, mas a diferença essencial entre os campos é que na literatura há uma estrutura narrativa, há um contrato ficcional que impede essa relação automática. O narrador de Cães da Província torce descaradamente pelo protagonista, a todo instante se coloca a favor de Qorpo-Santo, posicionando-se contra a sociedade que o ataca. Por exemplo: “…as pessoas acusando-o de lunático e desmiolado, quando na verdade é apenas o homem mais inteligente de toda a Terra, de todo o Universo…”. Já aí é preciso cuidado, pois o narrador nos induz a também torcer, sendo parciais se estivéssemos analisando a história de vida real do protagonista.
O romance põe em cheque a tensão de uma sociedade contraditória em suas ações e moral pregadas e a figura meio libertária e não afeita às regras sociais de Qorpo-Santo. Ele próprio acerta em dizer, exasperado, na cena em que é interrogado pelo juiz e pelos médicos, que o estão colocando como um bode expiatório, hipocritamente escondendo as iniquidades da sociedade e esquivando-se da resolução dos verdadeiros problemas. E estes são muitos. Eusébio, amigo de Qorpo-Santo, ao se descobrir traído, manda que não se comprem mais queijos do homem em questão, deixando-o mais pobre enquanto Eusébio tem uma vida confortável, aumentando o desnível social. O mesmo Eusébio, ao ver-se abandonado, declara oficialmente que a mulher, Lucrécia, está morta. Como se não bastasse, ao vê-la retornar, deixa-a trancada no sobrado por meses, período de tempo no qual a espanca e a trata como objeto sexual para depois matá-la. O delegado Calado, símbolo da ordem social burguesa, é cordial, tarado e sugestivamente pedófilo. O narrador indica, em certo momento, que ele olhou “significativamente para as três meninas” – as filhas de Inácia (esposa de Qorpo-Santo a quem também assedia). Além de tudo isso, o juiz é um imbecil. É possível, então, ver que a decência e a moral da sociedade estão totalmente corrompidas, e a saída encontrada por aqueles que estão no poder é de apaziguamento. Não é para resolução, mas para parecer que está tudo em ordem.
Voltando mais detidamente ao narrador, há movimentos interessantes que este faz, embora em alguns momentos haja erros de construção narrativa. Não são poucas as vezes em que este narrador presentifica as cenas se colocando nelas: “Assim assiste-se daqui de uma confortável janela…” (cap. 8, I parte); “Atracam, enfim, ouvimos o ruído oco…”, “… e basta que a gente se volte…”, “ – Teorias acadêmicas – diz , quando já cruzam por nós…” (cap. 2, II parte); “… e o doutor Landell concluiu que logo a cerração se erguerá e teremos…” (cap. 4, III parte). Parece falar com certa nostalgia daquele passado e daquela figura a quem o narrador presta homenagem, fazendo com que seja desejo deste se colocar ao lado de Qorpo-Santo. Diminuir a distância do leitor de hoje aos personagens do século 19 também pode ser um dos efeitos. No entanto, o narrador é de 3ª pessoa e se porta como 1ª ao conjugar o verbo “teremos” e ao colocar o pronome “nós”. A forma está tensionada entre duas estruturas distintas que, a meu ver, são uma falha do romance.
Não se poderia deixar de falar na sociedade patriarcal que, se hoje em dia segue firme em suas estruturas, no século 19 era muito pior. A representação das mulheres em Cães da Província é totalmente rebaixada pelo narrador e pelos personagens homens (vide doutor Calado e Eusébio, os mais gritantes), embora Inácia apareça como uma mulher forte. Em sua estrutura, o romance se mostra assim mais explicitamente no capítulo 6 da III parte, quando Joaquim Pedro e Luísa, sua esposa, conversam. Esta é igualada a uma criança e posta como burra no desenvolver da cena. Na conversa, Luísa parece sempre tentar chegar ao nível intelectual do marido, mas sempre é bloqueada por uma barreira quase natural. “Seria, se não fosse…” e “Pior. Querendo que seja…”. Joaquim sempre avança no argumento enquanto Luísa chega só até um ponto. As mulheres são inferiores aos homens naturalmente, o romance parece dizer. Assim, a maneira de ser da mulher se cristaliza pelo romance e as assimetrias sociais de gênero perpetuam-se, muitas vezes superando o mundo empírico.
Embora o romance abra para vários sub-enredos, como a traição de Lucrécia, os assassinatos e a busca pelos responsáveis (o caso do açougueiro da Rua do Arvoredo) e processo de interdição de Qorpo-Santo, é este quem está no centro em todos os acontecimentos. Na cena final, em que mais uma vez vê-se ao lado de Napoleão III em uma construção imaginativa genial do protagonista, o romance se encerra deixando claro que Qorpo-Santo é louco e não é. E não importa o resultado do processo, fica claro que ele não é o problema da sociedade porto alegrense do século 19. Era um incompreendido, um maluco talvez, mais lúcido de toda província.
Rodrigo Mendes
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