Pode parecer absurdo para grande parte de vocês, meus queridos leitores, mas hoje falaremos de cirurgias plásticas como obras de arte.
Desde 1964, a artista francesa Orlan trabalha sobre o tema do status do corpo, sobretudo o corpo da mulher, na sociedade e as pressões exercidas sobre ele, sendo assim muito ligada ao movimento feminista – nessa época, artistas feministas usaram muito de performances para se fazer ouvir e se expressar. Segundo ela, nesse contexto, usar seu corpo torna-se um ato político.
Na década seguinte, nos anos 70, surgiu a arte corporal, na qual o artista usa seu corpo como matéria prima para a criação, por vezes chamada de body art, termo que pode causar grande confusão devido à também ser usado em relação à piercings e tatuagens, algo completamente diferente.
Entretanto, a artista usa o termo arte carnal para definir seu trabalho. Segundo ela:
“A Arte Carnal é um trabalho de autorretrato no sentido clássico, mas com meios tecnológicos que são aqueles de seu tempo. Ela [a arte carnal] oscila entre desfiguração e refiguração. Ela [a arte carnal] se inscreve na carne porque nossa época começa a dar a possibilidade. O corpo se torna um “ready-made modificado” porque ele não é mais esse ready-made ideal que é só assinar. A Arte Carnal não se interessa ao resultado plástico final, mas à operação-cirúrgica-performance e ao corpo modificado, tornado lugar de debate público.”
Orlan usa então a tecnologia presente em seu tempo para esculpir seu corpo, importando-se não com o resultado final, mas com a reflexão decorrente de cada uma das performances. Aconteceram nove dessas performances enquanto a artista era operada, entre 1990 e 1993, cada uma delas sendo baseada em um texto filosófico, psicanalítico ou literário, em torno do qual girava o tema da performance-cirurgia, sendo a sala decorada de acordo pela artista, que também lia o máximo possível do texto durante o procedimento. Ou seja, ao menos em parte das cirurgias, as anestesias eram locais para que a artista pudesse dirigir a performance. Várias operações foram realizadas, por exemplo, operando o queixo para ficar parecido com a Vênus de Botticelli ou o nariz inspirado na Pysché de Gerard, questionando assim o olhar do artista homem – agente ativo – que pinta um corpo idealizado da mulher – passiva. Através dessas e outras obras, Orlan mostra que a idealização do corpo existe não somente na nossa época, mas em diversas sociedades e épocas. Na cirurgia em que próteses que são geralmente usadas para deixar as maças do rosto protuberantes foram implantadas na testa da artista, o intuito foi relativizar o conceito de beleza, ou seja, esta pode ter a aparência de algo que não seria reputado belo. É importante notar que as performances não tem nenhuma ligação com a dor física, algo que aparece como catarse no trabalho de alguns artistas performáticos.
Orlan, O rosto do século XXI, cirurgia plástica, 1990.
Sandro Botticelli, O nascimento de Vênus, tempera sobre tela, 172,5 x 278,5, 1483. Conservada na Galleria degli Uffizi, Florença, Itália.
Existem duas formas de apreciação desse tipo de obra, na qual a questão da temporalidade é importante: in vivo, ao vivo, na qual o espectador está presente naquele momento – convenhamos que uma sala de cirurgia não poderia estar lotada de curiosos da arte – e in imago, em imagem, na qual a obra passa à posteridade através de textos, testemunhos, imagens fotográficas e de vídeo, resíduos e produtos diversos, por exemplo, nesse caso, desenhos feitos com sangue e relicários com pedaços de carne. A sala de cirurgia se torna, assim, o atelier da artista, que não procura um resultado estético, mas sim suscita a reflexão dos espectadores.
Bibliografia:
Denys RIOUT, Qu’est-ce que l’art moderne?, Paris, Gallimard, 2000.
Michael RUSH, New Media in Art, Londres, Thames & Hudson, 2005 p. 59-61.
Links:
Claire ANÉ, “Orlan, artiste: “Mon corps est devenu un lieu public de débat” (entrevista) in Le Monde. Consultado em 13/02/2018.
http://www.lemonde.fr/vous/article/2004/03/22/orlan-artiste-mon-corps-est-devenu-un-lieu-public-de-debat_357850_3238.html
Catherine BOUTHIER, “Prendre son propre corps comme support, le transformer, le travailler: Orlan invente “l’art charnel”” in Espace Pédagogique. Académie de Nantes. Consultado em 13/02/2018.
http://www.pedagogie.ac-nantes.fr/arts-plastiques-insitu/enseignement/notices/orlan-2–191291.kjsp?RH=PER
“Orlan” in Musée d’Art Contemporain de Lyon. Consultado em 13/02/2018.
http://www.mac-lyon.com/mac/sections/fr/collection/projet_scientif/dons/orlan
Fonte das imagens:
http://www.artwiki.fr/wakka.php?wiki=OrlaN
http://www.le-blog-de-la-pintade.fr/2017/06/orlan-artiste-atypique-feministe.html
http://www.tmvtours.fr/2014/05/22/chirurgie-esthetique-fabriquer-difference.html
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