Pablo Picasso, La Vie (A Vida), óleo sobre tela, 196,5 x 129,2 cm, 1903. Conservada no The Cleveland Museum of Art, Cleveland, EUA.
La Vie ou A Vida é uma das obras mais marcantes da fase azul (1901-1904) de Picasso, na qual a maior parte das pinturas retratam os sofrimentos físicos e mentais humanos através de tons azulados – lembremos que, em inglês, se sentir blue, ou seja, azul, é sinônimo de se sentir triste ou deprimido. Essa época corresponde ao início dos vinte anos do pintor, período anterior ao cubismo, no qual o jovem artista ainda não era conhecido e passava por dificuldades financeiras, vivendo entre Paris, Madri e Barcelona.
A fase azul começou em 1901 devido à depressão que se seguiu ao suicídio do pintor Carles Casagemas, amigo muito próximo de Picasso. Os amigos haviam viajado juntos à Paris, mas Casagemas foi rejeitado pela modelo de artistas Germaine Pichot, e, no intuito de ajudar o amigo, Picasso o levou de volta à Espanha. Casagemas, extremamente perturbado, voltou a Paris sozinho e organizou um jantar em um restaurante. Durante o evento, ele se levantou, leu algo que havia escrito, e, em seguida, atirou em Germaine e depois na própria cabeça. O tiro destinado à moça não atingiu seu alvo, mas Casagemas morreu no hospital algumas horas depois. Picasso, por sua vez, voltou à Paris depois de saber do ocorrido.
Pablo Picasso, Carles Casagemas, óleo sobre tela, 55 x 45 cm, 1899-1900. Conservada no Museu Picasso, Barcelona, Espanha.
Picasso raramente explicava suas obras, pois dizia que a linguagem de um artista é sua arte, e, assim, suas pinturas falam por si próprias. Entretanto, os historiadores e apreciadores de seu trabalho sempre tentaram desvendar os mistérios por trás de La Vie.
O que vemos em La Vie é um retrato de Carles Casagemas, à esquerda, junto a uma mulher que provavelmente é Germaine Pichot, e, à direita, uma senhora que carrega um bebê. O local no qual se encontram as figuras é um atelier de pintura, como podemos ver pelas duas telas ao fundo que apresentam figuras que parecem sofrer, fazendo eco ao estado de espírito depressivo do artista. Vale notar que quando estava em Paris durante esse período, Picasso continuou pintando no mesmo estúdio que antes dividia com Casagemas, o que certamente contribui para evocar a lembrança do amigo constantemente.
O desenho preparatório para esse trabalho deixa ainda mais claro que o ambiente se trata de um atelier de pintura, pois ao invés das telas soltas, uma única tela é mostrada sobre um cavalete e um homem vestido, talvez outro artista visitando o atelier e comentando a obra em preparação, foi colocado no lugar da senhora com o bebê à direita. O motivo pelo qual Picasso fez essa modificação na composição não é conhecido, entretanto, é possível que ele tenha tentado fazer com que a pintura tivesse um caráter mais universal, como veremos a seguir ao interpretar o significado da figura da mulher com o bebê.
Pablo Picasso, Desenho preparatório para “La Vie”, lápis sobre papel, 1903. Conservado no Museu Picasso, Barcelona, Espanha.
Ainda podemos perceber que a jovem que abraça Casagemas está nua, enquanto ele tem seu sexo coberto por um tecido, lembrando as representações do Cristo. O fato se torna curioso quando descobrimos que dizia se que Casagemas era impotente, fato que teria sido representado por Picasso em alguns retratos de maneira zombeteira, e, talvez, o motivo pelo qual Germaine não se interessava por ele.
Também é possível interpretar o casal como uma imagem do amor romântico e profano, enquanto que a senhora com o bebê que tem um quê de Virgem Maria com o menino Jesus poderia representar o amor sagrado e maternal.
Um detalhe interessante é o dedo em riste de Casagemas – em oposição ao seu sexo? – apontando para as obras no centro da composição, que indicaria o poder criador do artista que vence a morte através de suas criações e me recorda bastante da posição da mão de Deus no afresco de Michelangelo na Capela Sistina no qual Deus dá vida a Adão.
Michelangelo Buonarotti, A criação de Adão, afresco, 1511. Capela Sistina, Museus do Vaticano, Vaticano.
Corroborado pelo seu título, já foi dito que a pintura pudesse ser uma imagem alegórica das idades do homem, tema muito caro a diversos artistas durante toda a história da arte. O bebê representaria a infância, o casal, a juventude, e a senhora, a velhice. Penso que, se notarmos as posições das figuras na composição, a sequência infância-juventude-velhice criaria um círculo, representando assim o ciclo da vida, ciclo do qual a morte faz parte.
Dessa maneira, a pintura não é somente uma expressão dos mais profundos sentimentos melancólicos do artista, evocados pela lembrança do amigo morto, mas também uma alegoria universal que pode tocar a grande parte dos seres humanos, e, talvez, por este motivo seja uma obra tão famosa e uma das mais importantes da fase azul.
Bibliografia/Links:
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http://www.clevelandart.org/art/1945.24#
“La Vie (The Life) – the iconic masterpiece from Pablo Picasso’s Blue Period – will be shown in the Fondation Beyeler from February 2019” in Fondation Beyeler, [Online]. Consultado em 07/10/2019.
https://www.fondationbeyeler.ch/fileadmin/user_upload/Presse/Medienmitteilungen_E/en2018/EN_MM_La_Vie.pdf
Fontes das imagens:
http://www.clevelandart.org/art/1945.24#
https://www.cleveland.com/arts/2012/12/the_cleveland_museum_of_art_pr.html