À primeira vista, a cena aparenta ser a de uma mulher, com os olhos fechados, os ombros nus. Os cabelos são longos, a expressão diz pouco, e da obra emana algo vaporoso da interioridade no instante íntimo, mas dá indícios de um tom sagrado na obra. A confusão sobre o tema e a figura é permanente e alimenta as interpretações no ponto central da obra Os olhos fechados (Les yeux clos, 1890), de Odilon Redon.
Dividido em duas partes, a composição apresenta uma água opaca, com um brilho central, onde o reflexo do corpo não é visto. Isso oferece uma quebra nos dois espaços, como se a água fosse um bloco que varia entre o translúcido e o opaco. O curioso efeito aos olhos do observador reside no contraste entre essa massa de tinta branca e o resto da tela, que une fundo e água em lilás.
A figura também parece dual, remontando às representações de Cristo, o que daria a essa água, então, algo de sagrado. Há um movimento no traço do ombro, com o esboço deixado aparente, o que dá ao corpo esse mover-se em onda fantasmática, indica o espaço onde esse corpo se desloca.
Se os olhos da figura não retornam o olhar ao observador, o que há para se saber? É uma obra do não-dito, do onírico. De uma grande pausa meditativa, entre a melancolia e a serenidade, um confronto aos olhos que buscam definir e organizar um quadro em um tema, gênero e técnica. Os olhos do próprio observador são seduzidos ao brilho da água, no lugar exato onde estaria o reflexo do rosto. Nesse espaço nos é negado a expectativa do reflexo, de certa normalidade dos sentidos. Só há essa mancha inexplicável, que promove um deslocamento que é o próprio ato de ver.
Nos comentários sobre a obra pelo Musée D’Orsay, afirma-se:
“Os olhos fechados do sono ou da morte [que] evocam o mundo interior, o sonho, a ausência ou a aparência, temas férteis em Odilon Redon, como ele conta em A soi-même, seu diário publicado em 1922. A diluição extrema da tinta a torna quase imaterial, deixando visível o grão da tela. O busto parece flutuar em um espaço que o artista deixa indefinido”.
Na mancha branca que chama nossos olhos, está a bem-vinda confusão dos sentidos, em desconhecermos se são olhos fechados pelo sono ou pela morte. Não difere do grande mistério que reside em olhar os olhos dos outros, de encontrar esse vácuo inexplicável. A ironia está numa obra que, pelos olhos fechados, velados, incita a ver: se instigar pela mancha, pela interioridade, por tudo aquilo que não se vê. Como lançar uma pedra numa água para vê-la se tornar turva.
Há também o próprio ato da respiração nesses olhos fechados, que negam por um instante o real e os estímulos, para se concentrar nas águas, no silêncio que revela. Não é uma negação completa do real: é um reconhecimento do corpo nesse real. Por vezes, o desafio humano está em constatar que se pode abrir os olhos de outras formas durante a vida, que o seu movimento é sempre entre o abrir-se e o fechar-se.
Ademais, o texto do Musée D’Orsay chega a dizer que esse é “sem dúvida um retrato da esposa Camille Falte”. Odilon Redon se apoiava bastante no mistério e no ato da fantasia da pintura simbolista. Procurar as suas outras obras é como adentrar em um mundo colorido imaginado, entre borboletas e flores.


Por isso mesmo, ele toma o sagrado entre esse gesto comum da intimidade, fundindo, numa possível interpretação, a imagem da esposa com Cristo. Na pintura de 1897, Cristo em silêncio, conseguimos encontrar as correspondências dos olhos fechados. Somado a isso, haveria também uma referência aos bustos de Francesco Laurana, como Busto de uma mulher (Bust of a Lady, 1470).


Com essa soma de referências, Os olhos fechados, de Odilon Redon, incita a recriar a serenidade da contemplação. Na jovem de Francesco Laurana, no próprio Cristo de Redon, está essa proposta de ver com os olhos fechados o próprio silêncio e vazio. E unifica o observador à oração sagrada dos momentos.
Referências bibliográficas
DIXON, Christine. Masterpieces from Paris: Van Gogh, Cézanne, Gauguin and beyond Post-Impressionism from the Musée d’Orsay exhibition book. National Gallery of Australia, Canberra 2009 (site)
Créditos de imagem: © Musée d’Orsay, dist.RMN / Patrice Schmidt
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