“Final de tarde de verão na praia Skagen ou O Artista e sua Mulher” (1899), de Peder Severin Kroyer.
Existem verdades que só vivem dentro da obra, situações que somente o olho do artista consegue revelar. Quando ela esteve diante do quadro pela primeira vez, na exposição, espantou-se com a leve curva que pairava sobre o lábio de tinta da sua gêmea: o que era aquilo, uma ruga? Concentrou-se no detalhe, sem prestar atenção nas imagens, na sombra luminosa da lua sobre as águas, na alegria do cachorro, na solidão delicada das ondas. Demorou segundos para entender que, dentro daquele deslize do pincel, morava algo ainda desconhecido: o desespero de estar presa a algo doloroso, como uma madeira abandonada pelo barco naufragado se prende ao rochedo que o derrubou. No azul sufocante da pintura, a outra – tão semelhante a ela – contempla o horizonte fora do quadro, e a curva de desespero, que até então morava no silêncio de um detalhe, abre-se como uma fenda e a engloba, sai dos limites da representação, engole o mundo. Os seus olhos, que sempre imaginou alegres, revelam-se mortiços, pálidos, e a mulher percebe que, para o artista, ela nunca foi alguém, mas um pretexto para exibir nas reuniões, um simulacro de alegria. A sua vida só é feliz quando cercada pela moldura de um quadro. Lembra das conversas do marido: quero pintar a nossa felicidade, quero fazer uma cena conjugal que mostre ao mundo o nosso sentimento, eu quero, eu quero. Ele levou cinco anos para achar a lua certa, a luz apropriada, o local idílico, a areia mais branca; depois, colocou os barcos a pescarem no silêncio da imagem, sem mostrar os pescadores que espreitam as redes em busca dos peixes distraídos que namoram à noite. Construiu toda a cena para mostrar o amor do casal, mas esqueceu que a obra de arte não consegue mentir e, no risco de agonia sobre o lábio da mulher idealizada, no olhar perdido para longe, no corpo encolhido que se afasta do homem, está toda a verdade que precisa saber: não quer mais. E não adianta segurar com força o seu braço, fora e dentro da vida, pois a pintura, espelho incômodo da realidade, venceu o tempo e mostrou aquilo que ela até então desconhecia – o amor morreu.