OBRAS INQUIETAS 29. “Estátua suméria de casal diante de Deus”, Anônimo (c. 2600 a. C.)


“Estátua suméria de casal diante de Deus”, Anônimo (c. 2600 a. C.)

Contemple o vosso Deus e estremeça, verme. Fique diante do Impossível; sinta a presença queimar o mundo, eviscerar as suas memórias, preencher o universo com um canto de terror e enlevo. Toda a sua vida foi uma antecipação desse momento e, agora que ele enfim aconteceu, a fala sumiu, o choro desapareceu e restou somente o desespero de se saber ínfimo, insignificante engrenagem em um jogo que já existia antes da sua chegada e continuará sendo jogado com bocejante previsibilidade. Sinta a sua real extensão, criatura de pó e cinzas postergadas. Suas mãos ainda recendem à terra que semeou pela manhã; muitas vezes eu o acompanhei nos afazeres no campo, nos olhares temerosos lançados à noite e às crueldades que moram nos gritos invisíveis da escuridão. Eu lambi os seus arrepios de horror quando a Morte chegou, eu estava presente quando a vida lhe bafejou de graça e medo. Vejo que você trouxe a sua mulher, como se isso fosse trazer piedade, como se um Deus pudesse lhe perdoar por algo tão abominável e transitório quanto o amor. Vocês se abraçam, procurando conforto para o que sequer conseguem explicar, preenchidos pela presença de algo inominável, fatídico, repleto de violência e sofreguidão, que está na sua frente e em todos os lugares. Escuto as preces titubeantes entoadas por vocês, dois fazendeiros, buscando uma piedade que jamais oferecerei, e a minha risada faz o firmamento encolher as suas nuvens: eu já estive diante de reis, de prostitutas e de macacos; já fechei os olhos de falsos deuses, já beijei os lábios de criaturas extintas. Não há espaço para piedade nesse mundo, nunca houve. Pois eu sou o vosso Deus, aquele que não possui sombra, o que estava antes e estará depois, o horror sem nome, e vocês não passam de pasto para uma fome que nunca termina.

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