Kazimir Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, óleo sobre ela, 79,4 × 79,4 cm, 1918. Conservada no Museum of Modern Art, em Nova Iorque, EUA.
Não, a foto de capa desse texto não está com “pau”, como acontece às vezes nos sites hospedados pelo WordPress. A obra de hoje realmente apresenta um quadrado branco sobre um fundo branco – inclusive, esse é exatamente seu título. Provavelmente, você está pensando que esse é um daqueles absurdos da arte moderna e contemporânea – aliás, esta é a primeira abstração sobre a qual tratamos nessa coluna. Estaria Malevich zombando de seus espectadores quando criou essa pintura? Veremos que é bem mais complexo do que isso e, quem sabe, conseguirei seduzir os espectadores céticos sobre a validade do conceito da obra e, assim, da própria arte moderna e contemporânea. Vejamos:
Primeiramente é de extrema importância entender o contexto no qual a obra está inserida. O final do século XIX e início do século XX foi o momento no qual a arte sofreu um processo de mudança e revolução nunca antes visto, e diversas correntes artísticas – algumas delas totalmente opostas entre si – coexistiam, com artistas escrevendo manifestos – às vezes verdadeiramente ácidos – explicando suas iniciativas ao público que nem sempre compreendia. Em meio à fauvistas, cubistas, futuristas e tantos outros que já se distanciavam bastante da cópia do mundo real em detrimento da visão do artista, surge a abstração. Por sua vez, a abstração possuía duas vertentes contrárias. Uma delas, liderada por Vassily Kandinsky, esparramava cores e formas fluidas sobre a tela, na intenção de expressar uma visão espiritual da arte. Do outro lado, com destaque para Mondrian e Malevich, estava a tendência que primava o total distanciamento das formas da figuração, e, para eles, o quadrado, exatamente, era a perfeita expressão da não imitação da natureza, dado que os ângulos agudos não existem nela. A partir dessa forma de base, conseguiam-se todas as outras: o círculo, através da rotação do quadrado, a linha e o retângulo, com seu prolongamento, o triângulo, dividindo-0, a cruz com a junção de vários deles, e por aí vai. Uma das obras mais célebres de Malevich, por exemplo, é Quadrado negro sobre fundo branco de 1915, ancestral de Quadrado branco sobre fundo branco. A pintura é a mais conhecida do suprematismo, corrente inaugurada por Malevitch, na qual se valoriza a supremacia do sentimento ou percepção pura nas artes picturais, sendo a Revolução Russa vista como o início de uma nova sociedade na qual o materialismo eventualmente lideraria liberdade espiritual.
Ambas as correntes abstracionistas foram amplamente criticadas, sendo vistas, sobre tudo, como produzindo obras somente decorativas, tal qual um tapete ou uma toalha de mesa.
Apesar de diferente da visão de Kandinsky, Quadrado branco sobre fundo branco também possui seu espiritualismo. Afinal, o próprio Malevich, assim como vários outros artistas da abstração, possuía influências teológicas e as usava para explicar suas obras e a concepção destas. A tela evoca então toda a possibilidade de comunicação com o absoluto, e a possibilidade de criação de um novo mundo ligado ao espiritual, ao invés de ser um simples vazio pictural e material.
Segundo o artista:
“Eu sou livre somente quando minha vontade, através de uma argumentação crítica e filosófica, pode colocar no mundo a partir do que existe uma argumentação dos novos fenômenos. Eu encontrei o abajur azul das limitações coloridas, eu saí no branco, naveguem em seguida, camaradas aviadores, no abismo eu estabeleci os semáforos do suprematismo. Eu venci o forro do céu colorido após tê-lo arrancado, eu coloquei as cores no saco assim formado e eu fiz um nó. Naveguem! O abismo livre branco, o infinito está frente a vocês.”
Confesso que a obra teve grande impacto sobre mim na primeira vez que ouvi sobre ela na universidade. Ela se revelou subitamente como uma “sacada” de grande genialidade.
Para que fosse possível discernir a forma de um dos quadrados sobre o outro, Malevich usou dois tons de branco diferentes, um ligeiramente azulado e outro pouco mais quente. É válido esclarecer aos que nunca mergulharam um pincel em tinta a óleo e tentaram espalhar o liquido denso por uma superfície telada que realizar um quadrado perfeito e opaco com essa técnica não é exatamente fácil. Viva a pintura acrílica que atualmente possibilita a nós, artistas, criações abstratas mais fáceis.
Finalmente, também gosto de pensar em Quadrado branco sobre fundo branco como evocando todas as possibilidades da pintura sobre uma tela branca, ou seja, a própria essência da criação a partir do nada.
Bibliografia:
Denys RIOUT, Qu’est-ce que l’art moderne ?, Paris, Gallimard, 2000.
Georges ROQUE, Qu’est ce que l’art abstrait ?, Paris, Gallimard, 2003.
“Monochrome” on Larousse. Consultado em 26/06/2017. http://www.larousse.fr/encyclopedie/peinture/monochrome/153518
“Suprematist Composition: White on White” on MoMA. Consultado em 26/06/2017. https://www.moma.org/collection/works/80385
Fonte da imagem:
Par Kasimir Malevitch — MoMA, Domínio Público, commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=14943560
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Sobre a coluna OBRA DE ARTE DA SEMANA: Aline Pascholati, Marina Franconeti e Wagner Galesco se alternam escrevendo sobre obras de arte de diversas épocas às terças-feiras.